São Paulo, sábado, 1 de junho de 1996
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Tragédia grega volta com Allen e Bernardet

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Hesitei muito, muitíssimo, antes de escrever este artigo sobre dois filmes diferentíssimos: o alegre "Poderosa Afrodite", de Woody Allen, e o terrível "A Doença, uma Experiência", de Jean-Claude Bernardet (Companhia das Letras).
Bernardet, que faz tratamento de Aids, é professor de roteiro no curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, escreveu três romances, inúmeros roteiros, e, no livro autobiográfico de agora (ao qual chamei filme), conta como pegou e como convive com a Aids. O livro tem apenas 68 páginas e me encheu de piedade -e de raiva.
Conheci Jean-Claude ligeiramente nos anos Sarney, quando pertencemos os dois ao Conselho Federal de Cultura, que foi um dia extinto por Fernando Collor como se fosse um botequim sem licença de funcionamento.
Jean-Claude vinha de São Paulo, com seu jeito de francês dos branquérrimos e corados, seu grande e elegante esqueleto onde ele pendurava camisas alvas e fazia intervenções cinematográficas, isto é, só falava no que sabia, que era o cinema nacional. Conversávamos nos intervalos.
Agora me apareceu Jean- Claude neste auto-retrato sombrio, trágico, desbocado e no qual narra suas imprudências pré-Aids com uma "insouciance" que me revoltou. Acho que só mesmo esta Folha toleraria trechos do livro de Jean-Claude como os que vou transcrever.
Quando Jean-Claude pega Aids, as pessoas querem saber como e quando, um tanto, digamos, por curiosidade, mas igualmente para tratá-lo, para ver o que se pode fazer. Conta Jean-Claude:
"Não, não posso lhe dizer quando fiquei sabendo (...) foi, foi, pronto, Alphonse, Paris 84, ninguém se preocupava muito, ninguém falava em camisinha, virtuoso da foda, não havia como resistir a Alphonse; tinha-o conhecido numa festa de gente da alta (...) essa gente não devia estar contaminada. (...) A caminho de sua casa, mais uma foda genial. Alphonse me conta... cortar a foda, isso não. (...) Fernando transava por fora, eu também, com os outros me protegia. Um acidente com a camisinha no fim dos anos 80. E daí?"
Daí? Aids.
Prossegue Jean-Claude: "Só que não se morre de Aids como de enfarte, pena. Eu penso: talvez morra logo, mas o que esse médico puder ele fará, e será pelo melhor. (...) É o desfile cruel: rostos marcados pelo sarcoma de Kaposi, doentes que tentam andar amparados por amigos, olhos fundos em quase caveira. (...) Um senhor elogia a sua doença: vivia a esmo, a doença lhe fez bem. (...) Preciso sair desse limbo de pré-mortos. (...) Amanhã tenho que ir buscar o resultado do liquor. (...) Minha irmã também chegou. (...) Está ofendida com a mágoa que causei a meu irmão -mas de bicha o que se pode esperar? esse é o subtexto".
Há trechos em que Jean- Claude desperta nossa total solidariedade e desejo de ajudar e trechos em que se vangloria de estar com Aids.
Pelo menos o trabalho, e ainda as fodas eventuais, o mantêm alerta, esperançoso. Talvez inventem alguma droga nova, talvez dê tempo de acabar um novo filme.
Agora -vai dizer o leitor a si mesmo- esse colunista não vai ter coragem de tratar da comédia deliciosa de Woody Allen. Acontece que, embora Jean-Claude não fale nisso, nos dois "filmes" há a coincidência dos coros gregos.
Como se sabe, Woody Allen foi ao teatro grego de Taormina, na Sicília, para dar à sua hilariante comédia o toque clássico que queria.
E tanto ele como Jean-Claude -como qualquer pessoa que já tenha tomado conhecimento e visto teatro grego antigo- sabem que os coros são irremediavelmente trágicos. Mesmo dirigidos por Woody Allen, mesmo com a presença fantástica de Mira Sorvino.
Aliás, Woody Allen escolheu aquela jovem linda e da altura do Magic Johnson sobretudo porque ela parece a encarnação de uma coluna grega -só que viva, gostosa, dando a todo mundo ao preço de um michê baratíssimo.
Sem saber, essa doce puta, dominada e espancada por um cafetão aterrador, é a mãe do menino que Woody Allen e a mulher adotaram anos antes. Allen faz questão absoluta de tirar a moça do pântano festivo em que ela chafurda. Consegue. Salva a puta. Faz-lhe um filho, já que ela fala muito no filho que deu a adotar.
Woody Allen arranja um marido para ela, enquanto encontra Tirésias, malandro, falso cego que vê tudo. Uma grega do coro, que vive prevendo horrores, é admoestada por Woody Allen e protesta: "Mas meu nome é Cassandra".
Mira Sorvino (que tem mais de um nome no filme, inclusive o sugestivo de Lucy Orgasm) é quem diz os piores palavrões. Ela acaba por encontrar o homem ideal, que não se importa que ela esteja grávida e casa com ela, enquanto Woody Allen volta para a mulher, atriz que tem na vida real o ilustre sobrenome inglês de Bonham-Carter.
Woody Allen cuida de tudo e de tudo nos faz rir. Menos dos súbitos aparecimentos, nas ruínas de Taormina, do coro. Com o coro, os gregos inventaram para sempre nosso verdadeiro inconsciente coletivo. Sobretudo agora, quando as religiões retornam ao pó que eram, a tragédia grega volta a nos governar.
E não esqueça: depois de todas as trilogias trágicas de Ésquilo e Sófocles, havia a peça de um ato, satírica, safada, que podia ser feita por Woody Allen, caso ele vivesse naqueles dias de túnicas e oráculos, Édipos e Cassandras.
Jean-Claude Bernardet não fala em teatro grego, não menciona nada disso e dificilmente irá ver "Poderosa Afrodite". Mas no desolador manual que escreveu -sobre como pegar Aids quase que mais por displicência do que por concupiscência- ressoam o tempo todo, como um rufo de tambor fúnebre, a voz da verdadeira Cassandra e o berro de Édipo quando arranca os olhos em pleno palco, para não enxergar mais a mãe Jocasta que o contaminou para sempre.
Pirão Pascowitch
Numa nota chamada "Pirão" (Ilustrada, 25/5), Joyce Pascowitch me dá como "estrela" de um almoço em Brasília, no Alvorada, com o presidente Fernando Henrique. É falso. Lá não estive.

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