São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Muletas para o dinossauro

ROBERTO CAMPOS

"Deus está nos detalhes"Guimarães Rosa Sempre achei que o Brasil e o México não atingiriam o patamar mínimo de racionalidade necessário ao ingresso no Primeiro Mundo enquanto ficassem escravizados a tabus da era fetichista, ou seja, aos respectivos monopólios do petróleo -a Petrossauro e a Pemex. Esta, um depósito de ineficiência e corrupção. Aquela, uma matriz de corporativismo predatório. Com a agravante de que, enquanto o México encampou produção existente, o Brasil monopolizou o risco. Criar dívida externa para importar petróleo -ao invés de atrair capitais para produzi-lo internamente- e além disso transformar essa burrice em patriotismo é uma agressão à lógica econômica. Ao longo de 44 anos, perdemos grandes oportunidades de financiar o petróleo com poupança externa e concentrar nossos recursos em educação, saúde e infra-estrutura. Hoje está (ou antes, será) flexibilizado o monopólio. Mas teremos de competir na atração de capitais com áreas de petróleo mais abundante e barato, não só na América Latina, mas nos países ex-comunistas.
Sobre o corporativismo predatório do Petrossauro, não restam dúvidas. Infelizmente, o presidente Fernando Henrique Cardoso, cedendo à chantagem dos estatolatras que ameaçavam paralisar as reformas constitucionais no Senado, prometeu não privatizar o Petrossauro. O que ele não sabe é que ela já está privatizada. Só que em favor dos seus funcionários.
Supostamente uma empresa pública, ele deveria priorizar o Tesouro, seu principal acionista (51,31%). Na realidade, é uma entidade assistencial, de que se aproveitam seus funcionários para construírem seu patrimônio pessoal. O Fundo de Pensões Petros recebe anualmente doações que representam, na média, quatro a cinco vezes mais do que os dividendos do Tesouro. A rentabilidade do capital do Tesouro tem sido de 0,6% ao ano, o que constitui péssima aplicação de dinheiro público.
Os dividendos representam uma proporção pequena das doações à Petros (em média, 22%), ao passo que o total das doações a essa fundação apresentaram 88% dos lucros da empresa. Num futuro encontro de contas, o Tesouro deveria pleitear ressarcimento, pois pelo menos 25% deveriam legalmente ser distribuídos aos acionistas.
Após a emenda flexibilizadora de setembro de 1996, havia uma esperança e um receio. A esperança era uma abertura para investimentos privados, que acelerasse nossa auto-suficiência, trouxesse receitas para o Tesouro ou nos desse tranquilidade cambial. Os requisitos para transitarmos da cultura monopolística para a cultura regulatória seriam os seguintes:
- criação de uma entidade reguladora independente;
- licitações livres e competitivas para a pesquisa e lavra por capitais privados nacionais e estrangeiros;
- liberdade empresarial para: (a) construção de novas refinarias, terminais e dutos ou ampliação dos existentes, e
(b) importação e exportação de petróleo e derivados;
- eliminação de privilégios monopolísticos e estabelecimento de regras de competição equânimes, capazes de atrair capitais externos;
O receio era que os corporativistas da Petrossauro, infiltrados em diversas agências do governo, procurassem, na legislação implementadora, emascular a liberalização constitucional, por meio de restrições desincentivadoras de concorrência e preservadoras dos privilégios do monopólio. Esse receio era um fácil exercício profético. O anteprojeto submetido pelo Ministério de Minas e Energia à Presidência da República é um misto de burocratismo dirigista e corporativismo descarado.
Os defeitos do projeto assim se capitulam:
1. Falta de um órgão regulador independente. No anteprojeto prevê-se uma duplicidade de órgãos -uma Agência Nacional de Petróleo (ANP) e um Conselho Nacional de Política de Petróleo (CNPP)-, ambos vinculados ao Ministério de Minas e Energia. A praxe internacional nos modelos regulatórios é a criação de uma entidade independente. No caso brasileiro, seus membros deveriam ser aprovados pelo Senado Federal e ter mandatos fixos, não coincidentes com o do presidente da República. Essa independência é necessária para que possa disciplinar tanto as atividades do setor público como do setor privado, arbitrando conflitos entre as partes. Além da tarefa fundamental de gerir o processo de licitação e concessão, caber-lhe-ia a função de assegurar o acesso aberto, de todos os concessionários, aos terminais e dutos construídos pela Petrossauro enquanto delegada do poder monopolístico da União. Essas instalações deveriam aliás ser desmembradas e incorporadas a uma nova empresa, sob o controle da agência reguladora, para prestação de serviços, em igualdade de condições, a concessionários públicos e privados.
2. Rigor regulatório e intervencionismo extremo. O anteprojeto não consegue sair da tradição hiper-regulatória e intervencionista de nossa política petrolífera. Numa época em que a economia de mercado comprovou sua superioridade em relação à planificação estatal, o anteprojeto engessa a política petrolífera através de três planificações -o Plano Nacional de Refino, o Programa Nacional de Abastecimento e o Programa Anual de Exportação e Importação de Petróleo. Essas orientações cominatórias, de estilo soviético, nada têm a ver com o livre funcionamento do mercado, muito mais ágil e capaz de prover o abastecimento e maximizar a produtividade. Segundo o texto atual, as empresas constituídas no país seriam, em tese, livres para construir refinarias, desde que dentro do Plano Nacional de Abastecimento (que certamente a subordinará aos interesses da Petrossauro). Num regime competitivo, a eficiência no abastecimento é condição de sobrevivência das empresas e disso cuidarão melhor que qualquer planejador planaltino. Abolido, como deve ser, o controle de preços, a defesa dos consumidores e das refinarias privadas está na liberdade de importação.
3. Muletas para o dinossauro. Perpassa o anteprojeto a preocupação de poupar a Petrossauro do desconforto da concorrência.
- Essa empresa não apenas manterá direitos privativos sobre as áreas em que já tem produção efetiva, mas terá prazo garantido de três anos para exploração e desenvolvimento nos "prospectos" (feições geológicas mapeadas como resultado de interpretação geológica). Isso habilita a Petrossauro (que só explora 8 das 29 bacias brasileiras) a manter uma reserva de mercado sobre áreas muito superiores à sua capacidade de investimento;
- Em caso de empate nas licitações, essas serão decididas em favor da Petrossauro. Isso é nitidamente inconstitucional. Não cabe ao Estado, que tem tarefas indelegáveis a cumprir, substituir-se no capital privado na área empresarial. Em igualdade de condições deve prevalecer o princípio da livre iniciativa.
- Tratamento fiscal privilegiado para a Petrossauro. Esta continuará pagando royalties de 5%, enquanto que os concessionários privados terão que pagar o dobro (não é claro se a Petrossauro manterá o privilégio da isenção do Imposto de Renda e do Imposto de Importação de equipamentos de exploração, isenções que lhe aumentam o lucro disponível para doações à Petros).
4. Restrições despropositadas aos concessionários privados. É descabida a exigência de prévia aprovação de ANP para que o concessionário privado possa associar-se a terceiros ou ceder, em todo ou em parte, seus direitos contratuais. Essa restrição só seria cabível em regime monopolístico. O prazo de três anos para atividades exploratórias é curto demais para empresas que não estejam ainda implantadas no país, e contraria a praxe internacional que prevê prazos de seis a dez anos, dependendo da natureza e acessibilidade da estrutura geológica.
Nota-se no anteprojeto uma disposição de avançar além do prometido pelo presidente da República em sua desastrosa carta (agosto/96) ao Senado Federal. Ele declarou não pretender, durante seu tucanato, privatizar a Petrossauro. Mas o anteprojeto extrapola ao tornar mandatória, por lei, a manutenção do controle estatal. Isso engessa a ação de futuros governos, que podem preferir reduzir o endividamento estatal a controlar uma empresa de baixíssima rentabilidade para o Tesouro. Outrossim, a reserva de mercado para a Petrossauro se referia apenas às áreas em efetiva exploração. O anteprojeto amplia essa reserva para cobrir também os "prospectos".
O presidente bem faria em perfilhar textos mais liberalizantes como os de seus correligionários tucanos -Márcio Fortes e Eduardo Mascarenhas-, muito mais adequados para a atração de novos investimentos e para nossa independização do abastecimento externo.
O anteprojeto é libertário apenas na retórica. Quando a gente desce aos detalhes, a coisa é diferente. E, como diz Guimarães Rosa, "Deus está nos detalhes"...

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