São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Deleuze escreve sobre Whitman

GILLES DELEUZE

Com muita segurança e tranquilidade, Whitman diz que a escrita é fragmentária e que o escritor americano tem o dever de escrever em fragmentos. É justamente o que nos perturba, esta atribuição à América, como se a Europa não houvesse avançado nessa via. Mas talvez seja preciso lembrar da diferença que Hõlderlin descobria entre os gregos e os europeus: o que é natal ou inato nos primeiros deve ser adquirido ou conquistado pelos segundos, e inversamente (1).
De uma outra maneira, ocorre o mesmo com europeus e americanos: os europeus possuem um senso inato da totalidade orgânica, ou da composição, porém devem adquirir o senso do fragmento, e não podem fazê-lo senão por meio de uma reflexão trágica ou uma experiência do desastre. Os americanos, ao contrário, têm um senso natural do fragmento e o que devem conquistar é o sentimento da totalidade, da bela composição. O fragmento está aí, de uma maneira irrefletida que precede o esforço: fazemos planos, mas, quando chega o momento de agir, "precipitamos o assunto e deixamos a pressa e a grosseria da forma contarem a história melhor do que o faria um trabalho elaborado" (2).
O próprio da América não é portanto o fragmentário, mas a espontaneidade do fragmentário: "Espontaneidade e fragmentário", diz Whitman (3). Na América, a escrita é naturalmente convulsiva: "São apenas pedaços do verdadeiro enlouquecimento, do calor, da fumaça e da excitação dessa época". Mas a "convulsividade", como o precisa Whitman, caracteriza a época e o país, não menos que a escrita (4). Se o fragmento é o inato americano, é porque a América ela mesma é feita de Estados federados e de diversos povos imigrantes (minorias): por toda parte coleção de fragmentos, assediada pela ameaça da Secessão, isto é, da guerra. A experiência do escritor americano é inseparável da experiência americana, mesmo quando ele não fala da América.
É o que dá à obra fragmentária o valor imediato de uma enunciação coletiva. Kafka dizia que numa literatura menor, isto é, de minoria, não há história privada que não seja imediatamente pública, política, popular: toda a literatura vem a ser "o caso de um povo", e não de indivíduos excepcionais (5). Não seria a literatura americana menor por excelência, à medida que a América pretende federar as mais diversas minorias? "Nação formigante de nações"? A América coleta extratos, apresenta amostras de todas as idades, todas as terras e todas as nações (6). A história de amor mais simples já coloca em jogo Estados, povos e tribos; a autobiografia mais pessoal é necessariamente coletiva, como se vê ademais em Wolfe ou em Miller. É uma literatura popular, feita pelo povo, pelo "homem médio" enquanto criação da América, e não por "grandes indivíduos" (7). E, desse ponto de vista, o eu dos anglo-saxões, sempre despedaçado, fragmentário, relativo, opõe-se ao Eu substancial, total e solipsista dos europeus.
O mundo como conjunto de partes heterogêneas: colcha de retalhos infinita, ou muro ilimitado de pedras secas (um muro cimentado, ou as peças de um quebra-cabeça, recomporiam uma totalidade). O mundo como amostragem: as amostras ("espécimes") são precisamente singularidades, partes notáveis e não totalizáveis que se destacam de uma série de partes ordinárias. Amostras de dias, "specimen days", diz Whitman. Amostras de casos, amostras de cenas ou de vistas ("scenes", shows ou "sights"). Com efeito, as amostras ora são casos, segundo uma coexistência de partes separadas entre si por intervalos de espaço (os feridos nos hospitais), ora são vistas, segundo uma sucessão de fases de um movimento separadas por intervalos de tempo (os momentos de uma batalha incerta). Nos dois casos, a lei é a da fragmentação.
Os fragmentos são grãos, "granulações". Selecionar os casos singulares e as cenas menores é mais importante que qualquer consideração de conjunto. É nos fragmentos que aparece o pano de fundo oculto, celeste ou demoníaco. O fragmento é o "reflexo apartado" de uma realidade sangrenta ou pacífica (8). Mas é preciso que os fragmentos, as partes notáveis, casos ou vistas, sejam extraídos por um ato especial que consiste precisamente na escrita. A escrita fragmentária em Whitman não se define pelo aforismo ou pela separação, mas por um tipo particular de frase que modula o intervalo.
É como se a sintaxe que compõe a frase, e que dela faz uma totalidade capaz de desdizer-se, tendesse a desaparecer, liberando uma frase assintática infinita, que se estira ou lança travessões como intervalos espaço-temporais. E ora é uma frase casual enumerativa, enumeração de casos que tende para um catálogo (os feridos num hospital, as árvores num lugar), ora é uma frase processional, como um protocolo das fases ou dos momentos (uma batalha, os comboieiros de gado, os sucessivos enxames de zangões). É uma frase quase louca, com suas mudanças de direção, suas bifurcações, rupturas e saltos, seus estiramentos, germinações, parênteses. Melville nota que os americanos não têm a obrigação de escrever como os ingleses (9). É preciso que eles desfaçam a língua inglesa e a façam escorrer segundo uma linha de fuga: tornar a língua convulsiva.
A lei do fragmento vale tanto para a Natureza como para a História, tanto para a Terra como para a Guerra, tanto para o bem como para o mal. Entre a Guerra e a Natureza, certamente há uma causa comum: a Natureza avança em procissão, por seções, como os corpos do exército (10). "Procissão" de corvos, de zangões. Mas, se é verdade que o fragmento é dado em toda parte, do modo mais espontâneo, vimos como um todo ou um análogo de todo continuam tendo que ser conquistados, e mesmo inventados. Todavia acontece que Whitman coloca na frente a idéia de Todo, invocando um cosmos que nos convida à fusão; numa meditação particularmente "convulsiva", ele se diz hegeliano, afirma que só a América "realiza" Hegel, e postula os direitos primeiros de uma totalidade orgânica (11). Exprime-se então como um europeu, que encontra no panteísmo uma razão para inflar o seu eu. Mas quando Withman fala à sua maneira e no seu estilo, fica claro que uma espécie de todo deve ser construída, tanto mais paradoxal quanto só vem depois dos fragmentos e os deixa intactos, não se propõe totalizá-los (12).
Essa idéia complexa depende de um princípio caro à filosofia inglesa, ao qual os americanos darão um novo sentido e novos desenvolvimentos: as relações são exteriores a seus termos... Por conseguinte as relações poderão e deverão ser instauradas, inventadas. Se as partes são fragmentos não totalizáveis, pode-se ao menos inventar entre elas relações não-preexistentes, testemunhando de um progresso na História, assim como de uma evolução na Natureza. O poema de Whitman oferece tantos sentidos quantas relações entretem com interlocutores diversos, as massas, o leitor, os Estados, o Oceano... (13) A literatura americana tem como objeto pôr em correlação os aspectos mais diversos da geografia dos Estados Unidos, Mississipi, Rochosas e Prados, e de sua história, lutas, amor, evolução (14). Relações em número cada vez maior, e de qualidade cada vez mais fina, é como o motor da Natureza e da História. O contrário da Guerra: seus atos de destruição incidem sobre toda relação e têm por consequência o Hospital, o hospital generalizado, isto é, o lugar em que o irmão ignora o irmão, e onde partes agonizantes, fragmentos de homens mutilados, coexistem absolutamente solitários e sem relação (15).
Contrastes e complementaridades, não dadas porém sempre novas, constituem a relação entre as cores; e sem dúvida Whitman fez uma das literaturas mais coloristas que existem. Contrapontos e responsos, constantemente renovados, inventados, constituem a relação dos sons ou o canto dos pássaros, que Whitman descreve maravilhosamente. A Natureza não é forma, mas processos de correlação: ela inventa uma polifonia, ela não é totalidade, mas reunião, "conclave", "assembléia plenária". A Natureza é inseparável de todos os processos de comensalidade, convivialidade, que não são dados preexistentes, porém se elaboram entre viventes heterogêneos, de modo a criar um tecido de relações moventes, que fazem com que a melodia de uma parte intervenha como motivo na melodia de uma outra (a abelha e a flor). As relações não são interiores a um Todo, é antes o todo que decorre das relações exteriores em tal momento, e que com elas varia. Por toda parte as relações de contraponto devem ser inventadas e condicionam a evolução.
O mesmo ocorre nas relações do homem com a Natureza. Whitman instaura uma relação "gimnástica" com os carvalhos de tenra idade, um corpo-a-corpo: ele não se funde neles nem se confunde com eles, mas faz com que algo passe entre eles, entre o corpo humano e a árvore, nos dois sentidos, o corpo recebendo "um pouco de seiva clara e de fibra elástica", mas a árvore por sua vez recebendo um pouco de consciência ("talvez façamos uma troca") (16). O mesmo ocorre enfim nas relações do homem com o homem. Aí também o homem deve inventar sua relação com o outro: "Camaradagem" é a grande palavra de Whitman para designar a mais elevada relação humana, não em virtude do conjunto de uma situação, mas em função dos traços particulares, das circunstâncias emocionais e da "interioridade" dos fragmentos concernidos (por exemplo, no hospital, instaurar com cada agonizante isolado uma relação de camaradagem...) (17).
Assim se tece uma coleção de relações variáveis que não se confundem com um todo, mas produzem o único todo que o homem é capaz de conquistar em tal ou qual situação. A Camaradagem é essa variabilidade, que implica um encontro com o Fora, uma caminhada das almas ao ar livre, na "grande-via". É com a América que a relação de camaradagem ganha supostamente o máximo de extensão e de densidade, alcança amores viris e populares, adquirindo ao mesmo tempo um caráter político e nacional: não um totalismo ou um totalitarismo, mas um "Unionismo", como diz Whitman (18). A própria Democracia, mesmo a Arte, só formam um todo na sua relação com a Natureza (o espaço aberto, a luz, as cores, os sons, a noite...); sem o que a arte cai no mórbido, e a democracia no embuste (19).
A sociedade dos camaradas é o sonho revolucionário americano, para o qual Whitman colaborou poderosamente. Sonho malogrado e traído bem antes que o da sociedade soviética. Mas é também a realidade da literatura americana, sob esses dois aspectos: a espontaneidade ou o sentimento inato do fragmentário; a reflexão das relações vivas a cada vez adquiridas e criadas. Os fragmentos espontâneos constituem o elemento por meio do qual, ou em cujos intervalos tem-se acesso às grandes visões e audições refletidas da Natureza e da História.
NOTAS
1. Hõlderlin, "Remarques Sur Oedipe", Col. 10-18 (e os comentários de Jean Beaufret, págs.. 8-11).
2. Whitman, "Specimen Days" (SD), "Au Fond des Bois": tradução francesa no prelo, ed. Mercure de France; tomamos de empréstimo nossas citações a esta tradução de J. Deleuze.
3. Idem.
4. SD, "convulsividade".
5. Kafka, "Journal", Livre de Poche, págs. 181-182.
6. Tema constante das "Feuilles d'Herbe" (Folhas da Relva), Mercure de France. Cf também Melville, "Redburn", cap. 33, Gallimard.
7. SD, "Echo d'un Interviewer".
8. SD, "Une Bataille Nocturne". E "a verdadeira guerra jamais entrará nos livros".
9. Melville, "D'o— Viens-tu, Hawthorne?", págs. 239-240. Do mesmo modo Whitman invoca a necessidade de uma literatura americana "sem traço ou tinta da Europa, de seu solo, de suas recordações, de suas técnicas e de seu espírito": SD, "Les prairies et les grandes plaines de la poésie".
10. SD, "Les Bourdons".
11. SD, "Carlyle du Point de Vue Américain".
12. Lawrence ("Études Sur la Littérature Classique Américaine", Seuil) critica Whitman violentamente por seu panteísmo e sua concepção de um Eu-Todo; mas ele o saúda como o maior poeta americano porque, mais profundamente, Whitman canta as "simpatias", isto é, as relações que se constroem no exterior, "na Grande-Via" (pág. 211-212).
13. Cf. Jamati, "Walt Whitman", Seghers, pág. 77: o poema como polifonia.
14. SD, "Littérature de la Valée du Mississipi".
15. SD, "La Véritable Guerre..."
16. SD, "Les Chênes et Moi".
17. SD, "La Véritable Guerre...". Sobre a camaradagem, cf. FH, "Calamus".
18. SD, "Mort du Président Lincoln".
19. SD, "Nature et Démocratie".
Tradução de Peter Pál Pelbart (sugestões de Luiz B. Orlandi). O texto acima faz parte do livro "Crítica e Clínica", que será publicado pela editora 34 no Brasil. "Critique et Clinique" foi editado originalmente pela Minuit (França).

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