São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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A angústia da influência

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Anthony Burgess (1917-1993) foi, em nossos dias, uma das grandes vítimas daquele fenômeno que se poderia chamar de "um livro só". Burgess escreveu vários livros bons, gostosos de ler, como esse "A Literatura Inglesa", de que vamos nos ocupar, e outros romances de valor, mas foi como que posto num liquidificador pela sua "Laranja Mecânica". Desconfio que os livros fundamentalmente proféticos, desabusados e violentos, destroem tudo à sua volta. "Laranja Mecânica" nos mete tanto medo o tempo todo, e continua a nos ameaçar de tal forma a cada releitura, que dos demais livros de Burgess passamos a exigir novos e deliciosos pavores.
Acontece que Burgess, senhor de uma vasta cultura literária e musical, homem que adorava a vida, as mulheres, a bebida, tinha muito mais a transmitir, além da visão da "Laranja". Não me lembro, em nenhum dos seus necrológicos, qualquer menção, digamos, à biografia que ele escreveu de Shakespeare ou ao seu precioso "A Shorter Finnegans Wake", ou "Finnegans Wake Abreviado".
"Finnegans Wake", como se sabe, foi escrito por James Joyce, é o mais importante romance do século e o mais intratável de todos os romances. Desconfie de quem fala com naturalidade em ter lido e "adorado" "Finnegans Wake". O próprio Joyce achava -desdenhoso quando dele reclamavam- que era tarefa para a vida inteira alguém decifrar e se deleitar com o livro que muitos consideravam a versão noturna do seu "Ulysses", mas que é na realidade a história do homem na Terra.
Seja como for, Burgess, grande linguista e erudito ele próprio, não só parece ter genuinamente adorado o livro, como dele nos deu a única leitura que qualquer mortal que saiba inglês pode fazer. Resumiu o enorme "Finnegans Wake" num volume pequeno, precedido de um excelente resumo do que vamos ler, e passa a alternar longos trechos do original joyceano com mínimas intervenções interpretativas.
No "Finnegans Wake Abreviado" temos, portanto, muito Joyce original e puro, sem água e sem gelo, a uma espécie de compassivo Burgess ao nosso lado, costurando, com pouca linha e muita graça, os anéis daquela serpente impressa que começa sem letra maiúscula e acaba sem ponto final -cobra que se engole a si mesma o tempo todo.
Burgess é o nosso Virgílio, guiando Dante. Pois não encontrei menção a essa obra-prima da "scholarship" inglesa nos necrológicos. Só dava laranja. Ou quase só.
Constato, agora, que Burgess foi também autor de "A Literatura Inglesa", que eu desconhecia, e que não é, nem pretende ser, um livro fundamental. Aliás, como esse artigo começou digressivo e indisciplinado, espero que o leitor ature mais uma digressão antes de chegarmos à obra que me cabe abordar.
Devido à existência de um poeta e dramaturgo chamado William Shakespeare, a literatura inglesa ficou sendo a mais importante do mundo. Se Shakespeare não tivesse existido, a questão seria altamente discutível. Mesmo para um mero leitor amador como eu, a literatura francesa teria que ser levada na mais séria consideração, pela colossal abrangência e a profundidade que consegue ter, mesmo quando opta pela leveza e a frivolidade. E a literatura italiana?, dirão outros, indignados. E a espanhola, a única que nos leva realmente aos pés de Deus, com Teresa de Ávila e S. João da Cruz?
Acontece, na literatura inglesa, que não se trata da maior por estar dentro dela a obra de Shakespeare. É que essa obra, ao contrário de qualquer outra, passou a forçar toda a literatura inglesa a uma rearrumação que não cessa nunca. Estou apoiado em T.S. Eliot, num dos seus primeiros livros de crítica ("The Sacred Wood"), quando nos diz que os livros fundamentais alteram e perturbam não só a época em que saem, e as épocas futuras, como os tempos passados também. É o mistério vital da obra fundadora. Não deixa nada mais em paz. Eliot não menciona Shakespeare, se bem me lembro, ao fazer tal observação, mas como Shakespeare só deixou obras fundadoras, fundamentais, a literatura inglesa adquiriu uma espécie de inquietação permanente. Feito o mar.
Eliot, carola que era, morria de admiração pelos poetas místicos, contemplativos, e achava Dante maior do que Shakespeare. Eram os dois maiores, sem dúvida, mas Dante refletia uma época de profunda e aceita religiosidade, enquanto Shakespeare, ao contrário, descreve tempos em que a fé já não ardia firme, o cristianismo se rachara para sempre, e o homem mergulhava na dúvida total do monólogo de Hamlet. Acontece que o mundo foi se afastando da paz dantesca, mergulhando cada vez mais em todas as dúvidas shakespearianas e chegou afinal a uma época como a nossa, do pesadelo "Laranja Mecânica".
Dante pertence hoje aos eruditos. Shakespeare não sai nem dos palcos brasileiros. Não satisfeito de jamais deixar em paz a literatura inglesa, ele invade e perturba todas as outras. Não sai de cena no mundo inteiro. Dele só se pode dizer o que disse ele de Cleópatra: "O passar do tempo não a faz murchar, nem o constante uso descolore sua variedade infinita".
É ainda ele, Shakespeare, que acaba com esta digressão interminável. Chego, por meio dele, à "Literatura Inglesa".
Nesse livro de "aulas", Burgess, professor disciplinado, dá a Shakespeare lugar digno, mas, diríamos à primeira vista, comedido. Só que ele encerra seu trecho sobre Shakespeare citando Alexandre Dumas, imaginem. Sabe o que diz Dumas? O seguinte: "Depois de Deus, foi Shakespeare quem mais criou".
E chego afinal ao livro "A Literatura Inglesa", de Anthony Burgess, que em boa hora a Ática publica no Brasil.
Foi dado como aulas em 1958 e revisto como livro em 1974. Mas é não só vigorosamente informativo e culto, como brilhante de estilo. O boêmio sem dinheiro que Burgess foi quase que a vida inteira tinha uma consciência artística e profissional sem jaça.
"A Literatura Inglesa" é puro "plaisir du texte", dá uma visão quase científica do fenômeno histórico-literário e se encerra com excelente quadro cronológico que mostra como literatura e história são espelhos vivos, que se refletem e se completam. Duvido que alguém, lendo um volume de história da Inglaterra, não leve um choque ao ler pela primeira vez o nome de Ricardo 3º. Shakespeare não deixa.
É claro que os quadros de Burgess só mencionam o primeiro Amis, Kingsley, e não seu filho, Martin Amis, que é quem escreve os romances agora. Mas não só o estilo de Burgess e seu amor pela literatura compensam o que lhe falta em atualidade, como se pode, com tranquilidade, afirmar que não houve, do fim do seu livro para cá, nenhuma alteração ou novidade fundamental na literatura que é a maior entre todas.
Sobretudo, ai de nós, não mais pintou, nem jamais pintará, outro William Shakespeare.

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