São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um lugar na história

SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ter sido professor de liceu em Orã, na Argélia, entre 1948 e 1960, foi um fato fundamental na formação do historiador Marc Ferro. Diante de seus alunos árabes, já não podia falar das vantagens da vida dos povos sedentários. No Magreb, sustentavam seus alunos, eram justamente os nômades que viviam melhor, pois nesta condição escapavam com mais facilidade ao controle do colonizador e preservavam a identidade árabe dos choques que a situação colonial criava.
Na realidade, "História das Colonizações - Das Conquistas às Independências", último livro do historiador francês, fala justamente dessas questões que, em 1948, o instigaram a moldar sua forma de ver e escrever a história.
"História das Colonizações" analisa os processos de colonização do século 13 até hoje. Tirando dos grandes descobrimentos o seu caráter inaugural como aventura colonizadora, regride ao século 13, quando russos, chineses e árabes já submetiam seus vizinhos, a exemplo do que farão portugueses e espanhóis mais tarde, cruzando o oceano. A partir desta visada larga no tempo e no espaço, Ferro procura escapar da visão eurocêntrica -triunfalista ou culpabilizada- e enriquecer a visada, pelas comparações entre diversos processos de colonização e pela constatação de que a vontade de domínio sobre territórios e populações não é um atributo apenas da cultura ocidental.
Toda a extensa análise, que se estende por diferentes colonizações -os russos, os turcos, os venezianos, os portugueses, os espanhóis, os ingleses, os belgas ou os franceses- nos diferentes territórios em que ocorrem -Ásia, África, América ou Oceania-, é balizada por uma questão posta pela atualidade: o que se tornaram todas as antigas colônias hoje, num momento em que, atropeladas pela globalização, não existe mais nenhum território que escape à intervenção econômica e cultural de um imperialismo multinacional?
Para compreender essa transformação, o francês passa a se indagar sobre a própria natureza dos processos de dominação. De tal modo que o que se anuncia como uma história da colonização termina por constituir algo mais amplo: uma tipologia da dominação.
Essa história é montada, assim, por meio das comparações e da similaridade de processos que o autor reconhece, entre outros, na descolonização das colônias americanas de meados do século 19 com os processos de independência dos povos árabes e africanos dos anos 50 e 60, na explosão das repúblicas que constituíam a URSS, ou nos choques entre o colonizador e o colonizado. É neste entrecruzar de visões que se estabelecem os fulcros comuns e a própria história deste processo, visto na longa e na curta duração.
"História das Colonizações" narra intrincados processos políticos (toda a questão da Argélia, por exemplo), combates por interesse econômicos (a divisão da África), ideológicos (o papel das mulheres nas sociedades tradicionais, as questões sobre a escravidão) e o constante, permanente entrecruzar cego, praticamente impermeável, das mentalidades e visões de mundo, em que prevalece, é claro, e se autoriza como verdade a visão do colonizador.
Neste sentido, Ferro rastreia exemplos que vão desde a "preguiça" que os europeus atribuem aos seus colonos (sejam eles os índios que os portugueses encontram no Brasil no século 16, ou os malaios ou javaneses diante dos ingleses no século 20), até a própria escrita histórica dos colonizadores, que, ao designar o processo de luta pela independência como "descolonização", negam ao colonizado o reconhecimento do seu último gesto, a rebeldia, e o próprio lugar de sujeito que toma diante de sua própria história.
Em meio a estas análises, o cinema, objeto de interesse de Ferro desde os anos 70, está sempre presente como um documento, da mesma forma que as fontes escritas, e mais ainda -é no cinema que em geral vai buscar a fala e o lugar de resistência do colonizado que, privado do controle político e da burocracia, teve no cinema uma de suas formas principais de expressão.
É no cinema que a mentalidade mais se explicita. Se descreve a situação marginal do colonizado em relação ao colonizador, na Argélia, na Tunísia ou no Marrocos, é na análise de "Pepé le Mokó" ou "A Carga da Brigada Ligeira" que encontra todos os traços do desencontro, da impermeabilidade de culturas e olhares: nas colônias o francês ou inglês é sempre um benfeitor e o árabe um bandido. É nessa realidade atualíssima que "História das Colonizações" nos lança.
Em meio às 431 páginas de texto, cronologia, mapas, bibliografia e filmografia sobre o tema, há um pequeno parágrafo que sintetiza todo o processo: "O estatuto das línguas e sua evolução são reveladores. Comparemos. Primeira etapa: na colônia, o francês, o inglês ou o espanhol só aprendem a língua nativa para mandar mais. Segunda etapa: hesitam em ensinar aos indígenas a cultura metropolitana, temendo aguçar-lhes demasiado a curiosidade. Terceira etapa: anglo-saxões, franceses, russos e, sobretudo, soviéticos difundem o ensino de suas próprias línguas para perpetuar sua superioridade técnica, econômica, política ou cultural. No final do século 20, nova etapa: os norte-americanos, por sua vez, têm de aprender a língua japonesa para não serem excluídos das filiais que a indústria nipônica implantou nos EUA..."(pág. 396).

Texto Anterior: A lógica do domínio
Próximo Texto: Nas trilhas da Geração X
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.