São Paulo, quinta-feira, 6 de junho de 1996
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Falta um arcobotante para acabar minha catedral

DAVID DREW ZINGG
EM SAMPA

Bem, David Zingg conseguiu voltar vivo de seu recente passeio europeu e americano.
Ele próprio voltou vivo -mas sua conta bancária, que já se encontrava subnutrida, morreu à beira da estrada. Ou seja, lhe faltavam alguns reais para conseguir ser funcional, no sentido bancário.
E isso me levou a refletir. A verdade é que sempre faltam à minha vida alguns pequenos detalhes que pudessem torná-la digna de ser qualificada como "vida".
Depois, comecei a refletir sobre minha lamentável capacidade mental, à qual sempre parecem faltar alguns picles para completar um vidro cheio. Ou algumas cervejas para completar um engradado.
Amo metáforas como os ursos amam mel. Pensando em tudo que parece estar faltando para fazer de minha vida um piquenique completo, redigi uma lista de supermercado de tudo que me faz falta.
Concluí que me faltam alguns sanduíches para um piquenique completo, alguns metros para minha bola de golfe cair no buraco, um arcobotante para completar minha catedral, algumas orelhas de porco para minha feijoada.
Mas pelo menos não sou candidato potencial à contracepção retroativa, como meu editor aqui na Folha. Ele é realmente excepcional. Possui memória fotográfica, mas a capa está permanentemente colada à lente de sua máquina.
Além disso, o QI do meu editor fica ligado permanentemente na temperatura ambiente.
E quanto à minha nova Jennifer aqui em Sampa, a luzinha que mostra que sua inteligência está ligada deve ter uns 25 watts, como aquelas lâmpadas que ficam acesas à noite no quarto das crianças. Mas ela é uma garota altruísta. Doou seu corpo à pesquisa científica antes de acabar de usá-lo.
Minha Jennifer está com os dois remos na água, mas os dois estão do mesmo lado do barco. Ela nasceu com um dia de atraso e continua assim até hoje.
É uma garota borbulhante de alegria -o único problema é que as bolhas se concentram todas em seu equipamento pensante.
Me roubaram no troco
A grande amiga da Jennifer não é muito diferente. Ela é tão burrinha quanto um pacote de pedras embrulhadas pra presente. Tem ecos entre as orelhas.
Todos os tijolos de sua parede estão lá, mas faltou massa para cimentá-los. Ela anda meia bolha fora de prumo. Tem vazamentos em seu telhado.
Como todo mundo de sua família, sua chaminé vive entupida. Pra não ser muito duro com ela, eu diria que lhe faltam quatro centavos pra ser uma moedinha de cinco.
Para a Lua
Quanto mais penso nas notáveis realizações mentais de minha nova Jennifer, mais eu me lembro de meu editor, que disparou seus foguetes retroativos um pouquinho tarde na vida.
Ele é o tipo de cara que seria demitido do McDonald's por falta de concentração. Para ele, os portões já se abriram, as luzes estão piscando, mas não tem trem nenhum se aproximando na linha.
Ele tem um bilhete só de ida no Expresso dos Desorientados. Sua cabeça apita num vento atravessado. Quando você fica bem ao lado dele, consegue ouvir o barulho do mar.
Meu editor depende pra tudo dos computadores da Folha -porque ele próprio é informacionalmente carente. Está precisando de uma atualização urgente de ROM. Sofreu uma pane de cabeça.
Acho que a melhor maneira de explicar o que acontece com ele é dizer que falta um bit no seu um byte. Ele vive lendo de um disquete em branco.
O grande sonho da vida do meu editor é ser astronauta, mas ele esqueceu seu propulsor na plataforma de lançamento e seu foguete só tem um estágio. Mas talvez consiga decolar -sua plataforma de lançamento solar está dirigida à Lua, embora sua antena não capte todos os sinais.
Veloz
Não pense, por favor, que exagero ao descrever a inteligência ofuscante das pessoas que amo e para quem trabalho. Algumas delas bebem da fonte de todo o saber -mas Jennifer e meu editor apenas gargarejam. Falta queijo no pão de queijo deles.
Jennifer acaba de aprender um truque perfeito para ocultar o fato de que constitui uma prova viva de que a natureza não odeia um vácuo. Mudou seu penteado. Agora ela usa rabo de cavalo para esconder a válvula de entrada de ar.
Não sei, talvez eu esteja sendo um pouco injusto com uma garota que acaba de voltar da Amazônia, onde passou um mês esquiando nas descidas.
E devo estar sendo igualmente injusto com meu editor, você não acha, Joãozinho? Afinal, se ele entrasse para uma corrida de 50 metros com uma mulher grávida, chegaria em terceiro lugar. Não deve ser culpa dele -a única coisa que ele fez foi nadar no lado raso da piscina genética.
Só está faltando o arroz pra meu editor ser um bom PF, ou uma árvore pra ele poder pendurar sua rede.
Falta uma sentença em seu parágrafo. Se tivesse só mais um neurônio, teria uma sinapse.
Ele é tão devagar que precisaria ir mais devagar ainda pra conseguir parar.

Tradução de Clara Allain

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