São Paulo, sexta-feira, 7 de junho de 1996
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O Eldorado da violência

MARIA ANGELA D'INCAO

A fronteira brasileira, reserva nacional e, atualmente, considerada mundial, contém uma lógica estrutural perversa.
Desde a colonização, as terras sempre foram ocupadas, em primeiro lugar, pela empresa mercantil, diferentemente dos EUA, onde a Common Law Marriage (Lei da Posse) garantiu a ocupação de terras devolutas por casais, oficialmente casados ou não, em definitivo, possibilitando uma sólida agricultura baseada, em grande parte, na pequena propriedade.
A ausência de uma política nessa direção -por vários motivos intrínsecos à nossa ocupação, entre eles a escassa população de Portugal e a mentalidade feudal das elites do período- determinou uma política de ocupação com consequências que se fazem sentir até hoje: a mobilidade da fronteira de acordo com a lógica própria dos preços da terra e a ausência do título de posse.
Daí a instabilidade do pequeno agricultor, invasor, posseiro ou não, que acaba, com muita dificuldade, por se instalar definitivamente, uma vez que a viabilidade de sua instalação depende do mercado e as terras disponíveis, na fronteira, estão longe dele.
Quanto mais próximas do mercado, maior o preço das terras, pois o custo da produção declina, obviamente.
O que pode definir fronteira, de uma perspectiva econômica, é, então, o fato de o preço da terra ser tão baixo que não justifica o custo para obter o título de propriedade.
Assim, a apropriação da terra pode ser explicada pela violência não institucionalizada, local.
O monopólio da violência pelo Estado, a possibilidade da violência institucionalizada, condição da cidadania, não chegam a se realizar por vários motivos; entre eles, porque o processo de legalização, por meio do sistema jurídico, é tão caro e demorado que não compensa ser acionado.
Alston, Liebcap e Schneider, em 1995, analisaram a relação entre custo da terra e legalização e concluíram que a legalização de terras, para além da fronteira, tem custos que não compensam.
Há, assim, na fronteira uma lógica de violência não-institucionalizada, ocasionada pelas estruturas jurídicas arcaicas e pela ausência de uma política moderna relativa à estrutura fundiária nacional.
A disputa de terras se dá quando elas ganham algum valor; em outras palavras, quando o custo da produção não seja tão alto que inviabilize qualquer iniciativa do pequeno ou grande empreendedor. São as terras próximas de mercados e de estradas.
Ninguém vai disputar terras para além da fronteira, na mata, onde estão os "coletadores", caboclos, índios e ribeirinhos da roça de níveis mínimos de subsistência.
Essa presença não ameaça o proprietário ou candidato a proprietário por motivos econômicos: as terras, nesse estágio, são, em geral, reserva econômica; melhor dizendo, especulações futuras. Somente quando a terra ganha uma estrada próxima o seu valor aumenta. Então, a disputa se instala e se "resolve" pela violência arbitrária.
Há, na região, uma abundância de terras públicas. O governo federal, desde 1970, procedeu a uma espécie de sequestro de terras na Amazônia -especialmente no Pará, onde a estrada Belém-Brasília era uma realidade-, com vista a garantir "a segurança e o desenvolvimento" e com o propósito de "povoar", ocupar o "espaço vazio" onde os programas de colonização, juntamente com grandes projetos, seriam as estratégias aliadas à presença do Exército.
Vejamos hoje a situação das terras do Pará: 29,7% pertencem ao Instituto de Terras do Pará (governo do Estado); 43,4%, ao Incra (governo federal); o restante está dividido entre Funai, área de fronteira e outros.
A questão não se refere só à presença de latifúndios improdutivos, que é grande e deve ser revista, mas também ao fato de que há terras públicas para fins de colonização ou assentamentos e que o Estado não quer, por razões não explícitas, investir nisso.
Ainda que seja relativamente recente na Amazônia a disputa de terras por agricultores (desde 1970), há hoje um grande contingente de sem-terra em busca de se estabilizar, na proporção mesma da falência do modelo de desenvolvimento adotado.
Não há nada de surpreendente em serem encontrados entre os sem-terra cidadãos de origem urbana. Afinal, o crescimento das cidades no Brasil é e foi, desde há muito, inchamento urbano, e não propriamente urbanização.
As perguntas que precisam ser feitas são: por que gastar enormes quantias em desapropriação de terras (com titulações e existência, muitas vezes, duvidosas) quando o próprio Estado detém posse para esse fim? Por que não investir em programas bem orientados, econômica e ecologicamente, em terras do próprio Estado?
Finalmente, por que em 1990 houve registro de um só imóvel rural com decreto declaratório para fins de reforma agrária, no município de Marabá, com área de 3.077.198, contra a existência de 79 áreas que estão, desde 1985, com os respectivos atos declaratórios ou acordados para reforma agrária, perfazendo total em projetos de até 16 mil famílias, onde somente 3.822 famílias foram assentadas (Pará Agrário, Idesp, 1992)?
Há algo para além dos números que, certamente, se situa na mentalidade de nossas elites, que só conseguem enxergar a questão da reforma agrária ou dos projetos de colonização como coisa social (sic), de pobre e não como modernização de estruturas arcaicas.

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