São Paulo, sexta-feira, 7 de junho de 1996
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Estudo da "inteligência emocional" vira mania nos EUA

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Está nas listas de mais vendidos o livro do doutor Daniel Goleman "Inteligência Emocional - A Teoria Revolucionária que Redefine o que É Ser Inteligente", publicado pela editora Objetiva.
O tema da inteligência emocional tem atraído as atenções do noticiário. Dizem que nos Estados Unidos há testes de inteligência emocional para quem procura emprego. A Folha publicou, há tempos, um teste desse tipo.
Havia perguntas mais ou menos assim: "Você acaba de ir mal numa prova de matemática. Sua reação é: a) dizer que o professor é um idiota, b) dizer que você mesmo é um idiota, c) estudar duas horas por dia até o próximo exame, d) comer uma caixa de bombons, e) jogar-se do alto de um edifício".
A não ser que você seja um idiota, você marcará a alternativa c e obterá assim um bom índice de inteligência emocional. Pode ser, entretanto, que você seja um idiota mesmo, e não estará errado marcar a alternativa b, nesse caso.
Não faz mal. O livro de Daniel Goleman demonstra, entre outras coisas, que a inteligência, tal como medida nos testes tradicionais de QI, não garante sucesso na vida profissional nem felicidade em família.
O que é verdade. Todos conhecem casos de pessoas intelectualmente brilhantes que, por neurose, nervosismo, desorganização, drogas, falta de persistência, terminam sem cumprir as promessas da infância.
Essa constatação é o ponto de partida para a criação do conceito de "inteligência emocional". O livro de Daniel Goleman não é um livro de auto-ajuda -baseia-se em muitas pesquisas de psicólogos e neurologistas-, mas tem todo o jeito.
Como todo exemplar dessa literatura, combina três ingredientes: bom senso absoluto, historietas explicativas, dados científicos. E produz no leitor três reações: concordância, dada a sensatez banal de suas teorias; gratificação ("não sou tão ruim como os exemplos que ele dá"), e esperança ("mas posso melhorar muitíssimo").
Naturalmente, o autor acha que a inteligência emocional pode ser ensinada, que podem ser feitos treinos e cursos para melhorá-la. Além disso, quem lê o livro, como sempre acontece nesses casos de auto-ajuda, já começa a se sentir melhor.
Todos esses livros servem para dissolver um pouco a idéia de destino, de inevitabilidade do caráter. Como que numa campanha eleitoral íntima, traçam programas de governo a que o candidato -nós mesmos- adere com entusiasmo... se não der certo, não faz mal, outra eleição (outro livro, outra teoria) vem logo em seguida.
Há mais uma razão para o sucesso dessa psicologia edificante. São as historietas que ilustram cada teoria. "Inteligência Emocional" está cheio delas. Sempre há exemplos de uma discussão caseira, entre Bob e Margaret, de uma conversa entre dois vizinhos, Abe e Lester, de uma briga do irmão, Kenny, com sua irmãzinha, Rachel.
Eis um exemplo do livro. Pamela está esperando seu marido, Tom, na porta do cinema. Está armada a situação, entra o diálogo, e transcrevo o trecho.
" 'Por onde anda ele? O filme começa em dez minutos', -queixou-se Pamela para a filha. 'Se tem uma maneira de seu pai foder tudo, ele fode.' Quando Tom apareceu, dez minutos depois, feliz por ter encontrado um amigo e se desculpando pelo atraso, Pamela vergastou com sarcasmo. 'Tudo bem... isso nos deu uma oportunidade de discutir sua fantástica oportunidade de foder tudo que é plano que fazemos. Você é tão irresponsável quanto egoísta.' "
A vantagem desse tipo de historieta é tripla. Introduz um componente de ficção num livro de não-ficção. Trata-se também de uma história com moral pronta, e o leitor gosta disso. Ademais, pode ser tanto uma anedota com a qual o leitor se identifica ("puxa, é exatamente isso que Mildred me disse aquela vez"), quanto uma história com a qual o leitor não se identifica ("bem, eu nunca seria tão rude com Bernard"), e nos dois casos o truque funciona.
Enquanto rolam esses pequenos casos de desinteligência emocional, o autor reúne dados científicos e recomendações espantosamente simples.
Os dados científicos são pescados no oceano de pesquisas psicométricas, psicoquânticas, psicotípicas das universidades americanas. Gostei muito do "teste do marshmallow". Você pega uma criança, põe um pedaço de marshmallow num prato, e diz: "Patty, minha querida. Tenho de sair e volto daqui a 20 minutos. Se você comer este pedaço de marshmallow, ótimo. Mas, se você não comer (sublinhe o "não"), quando eu voltar, você ganhará dois (sublinhe o "dois") pedaços de marshmallow (não, não precisa sublinhar "marshmallow").
Os resultados do teste são eloquentes. As crianças que esperaram pela volta do psicólogo (chamemo-lo de Marty) revelaram-se, no decorrer da vida, mais bem-sucedidos e felizes. Os que não esperaram por Marty cresceram como adultos inseguros, obesos, drogados, com baixos quocientes de inteligência emocional.
Bom teste; sem ironia, deve ser isso mesmo o que acontece. Tudo é claro e convincente. Tudo tem o ar tipicamente americano de um otimismo associado ao auto-esforço, de uma intimidade compreensiva (Fred, Tom, Benny), de um reforço científico ao senso comum. É tamanho o otimismo que se criaram escolas especializadas em desenvolver a inteligência emocional. Conta Goleman que há aulas até de interpretação das expressões faciais: sobrancelhas franzidas, boca vincada significam, por exemplo, caros alunos, que o sujeito está zangado, e então será útil usar a estratégia número 3-A ("Espere. Pare. Sorria") antes de argumentar com ele.
Não é que Goleman esteja errado. O que interessa é saber por que ele tem de dizer coisas tão evidentes e por que coisas tão evidentes surgem com o status de teoria revolucionária.
São reações tolas, mas comoventes, a uma sociedade que se baseou demais nos testes de desempenho lógico para avaliar seus cidadãos. Trata-se de uma tentativa de acabar com o predomínio dos exames de QI.
Há outro fator mais importante, porém. As sociedades ocidentais diminuíram enormemente seu empenho repressivo sobre os mais jovens. Sem repressão, é claro que os impulsos mais infantis vêm à tona -gula, raiva, egoísmo, preguiça. O problema é como lidar com esses impulsos sem voltar à repressão -confia-se em mobilizar, assim, a inteligência emocional de cada um.
O problema é que a cultura da não-repressão tinha como pano de fundo, nos anos 60, uma outra idéia de sociedade. Pensava-se no princípio da não-violência, na erradicação do consumismo, no fim da competitividade capitalista. Pensava-se em algo meio zen, calmo, horoscopista, oriental.
Acabou-se a repressão dos instintos, a disciplina nas escolas etc. Só que isso, ironicamente, serviu não à construção de uma sociedade hipponga, mas a novos mecanismos de consumo, à pornoviolência dos programas de TV, a uma ansiedade alimentada e artificial na cabeça de qualquer criança e adolescente. O resultado é que caiu o coeficiente de "inteligência emocional" para todos os jovens.
Uma coisa é resistir ao psicólogo Marty no teste do marshmallow. Outra coisa é a obesa Debby resistir a 20 comerciais de marshmallow por hora na TV. A sociedade americana -por extensão, a ocidental- desreprimiu para fragilizar, fragiliza para que se consuma mais. Daí surgem as teorias da inteligência emocional. Não dão certo, porque a necessidade de tipos psicológicos sem saúde é fundamental para a sobrevivência do sistema. Eles compram livros, também.

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