São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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Um artesão da transcriação

AUGUSTO DE CAMPOS

Há mais de 20 anos acompanho a trajetória de Antonio Risério, que conheci pessoalmente na Bahia em 1973. Poeta e crítico, um dos grandes animadores da lendária revista "CÓDIGO", de Erthos Albino de Souza, me habituei a vê-lo, desde logo, como um companheiro mais jovem, um combatente aguerrido das refregas de vanguarda, e a não me espantar com as surpresas do seu talento incomum. Suas primeiras incursões críticas, Kilkerry, Pagu, Leminski, já traziam a marca de uma inteligência vibrante e agressiva. O poeta emergiu entre os melhores dentre os jovens que se manifestaram nas revistas de vanguarda dos anos 70, "Poesia em Greve", "Artéria", "Qorpo Estranho", "Muda".
De uns tempos para cá, devolvido pela metrópole do sul ao recesso do recôncavo, Risério vem desenvolvendo uma reflexão profunda em torno da cultura afro-baiana (v. "Carnaval Ijexá", "Gilberto Gil Expresso 2222", "Caymmi: Uma Utopia de Lugar"). O coroamento dessa reflexão foi o livro "Textos e Tribos", suma e soma de um pensamento singular a partir de uma reivindicação fundamental, a da incorporação da poesia oral das culturas indígenas e afro-brasileiras ao "corpus" das nossas poéticas literárias. As propostas instigantes e provocativas de Risério, especialmente no domínio da tradução desses textos, encontram agora no presente livro não apenas sua continuidade, mas a exposição de sua prática exemplar, no que concerne à poesia de fonte iorubá, um dos pilares da construção riseriana. Eis que ele nos oferece algumas dezenas de orikis magnificamente traduzidos, segundo os preceitos da tradução criativa, transcriação ou tradução-arte. Não conhecendo a língua nem sendo um especialista da cultura iorubá, não possuindo nem registros vocais nem transcrição fônica dos originais, faltam-me, por certo, relevantes instrumentos para aferir o valor do trabalho, em todas as suas instâncias. Guio-me, neste caso, em primeiro lugar pelos resultados, que apontam para a construção de apreciáveis poemas em português. Em um estudo de "Textos e Tribos", o próprio Risério alinha as dificuldades da tradução da poesia oral, ainda mais no caso do iorubá, que, como o chinês, é uma língua tonal. Mas o desconhecimento do chinês não nos impede de apreciar as admiráveis traduções que Ezra Pound fez de Li T'ai Po, a partir das versões japonesas de Fenollosa. E, assim como Eliot disse de Pound ser ele o inventor da poesia chinesa para o nosso tempo, podemos afirmar, guardadas as proporções, que Risério está inventando a poesia iorubá para nós.
O iorubá, "língua tonal, saturada de metáforas", segundo S.A. Babalola, um de seus estudiosos, é também, na sua poesia, uma linguagem saturada de aliterações, paronomásias e onomatopéias. Desde cedo formado na antitradição do experimental, Risério evidentemente não incide no mais comum dos erros das traduções da espécie, que é o de converter a textura linguística original aos padrões convencionais da linguagem codificada. A estrutura dominantemente paratática, com ênfase nos extratos substantivos, os jogos verbais e as onomatopéias de incidência incomum, tudo indica que Risério buscou preservar ao máximo a força poética original.
Ê ê epa, Oiá ô./ Grande mãe./ Iá ô./ Beleza preta./ No ventre do vento.
Para tanto, como seu predecessor no resgate de poéticas ditas "primitivas", Jerome Rothenberg, o criador da "etnopoesia", Risério não hesita em fazer uso dos recursos da poesia de vanguarda, que, pela sua natureza contestadora em relação ao suposto "gênio da língua", lhe proporciona o território sem amarras para deslanchar as suas recriações. O que Risério nos oferece, afinal, é uma belíssima coletânea de poemas, em que os achados se acumulam numa sucessão irresistível. E esse é o teste dos testes da tradução de poesia. Tradução que não parece tradução. Poesia que é poesia.

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