São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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Observações sobre a vida interiorana

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em artigo publicado há alguns anos no suplemento "Cultura" de "O Estado de S. Paulo", chamava eu a atenção dos aficcionados de poesia para a obra de um jovem autor de Flores da Cunha (RS), que não só lá editava os seus livros como procurava neles exprimir, em registro lírico-irônico, a sua condição de interiorano. Vejo agora que, ao voltar-se para a crônica jornalística, Flavio Luís Ferrarini continua fiel a essa condição. Seu último livro, "Crônicas da Cidade Pequena", editado pelo jornal "O Florense", da sua cidade natal, reúne textos que ele vem ali publicando regularmente desde 1987.
Ao que parece, porém, a marca interiorana só se faz notar agora no local de edição, no título do livro e no poema reproduzido em sua quarta de capa, poema de que uma das estrofes diz significativamente: "Na cidade pequena as intimidades / São roupas esticadas no varal / Confissões de pequenas cobras / Sobre as vacas deitadas." Em vez de se comprazer em devassar a miúda intimidade de seus co-interioranos, o cronista Ferrarini prefere voltar as vistas para os desconcertos da vida cotidiana em geral. E o que dela diz, com agudeza e humor, vale tanto para a das cidades pequenas quanto das grandes -uma e outra hoje bem mais próximas entre si, por força da globalização uniformizadora, do que nos meus remotos tempos de menino do interior.
Os 76 breves textos reunidos em "Crônicas da Cidade Pequena" tratam de assuntos os mais variados. Que podem ir desde a mania, tão brasileira, de receitar remédios milagrosos, até a decadência do antigo costume de fazer visitas. Ou das vicissitudes das filas em bancos e repartições até a arte de inventar boas desculpas para as escapadelas conjugais. Às vezes, as ilustrações que acompanham alguns dos textos fazem parte de sua própria semântica. É o caso, por exemplo, da minicrônica "Sustentação" na qual, sobre a silhueta em preto de um pato a voar, está escrito em letras brancas: "Duas pernas sustentam um corpo. Duas asas sustentam um pássaro. Duas margens sustentam um rio. Duas fofoqueiras derrubam tudo."
Esse viés epigramático reaparece mais sistematicamente nos ditados ou aforismos de pé de página que rematam cada uma das crônicas. Vários deles são bem sacados: "Se for para perder, que seja a hora do dentista", "O poeta é aquele que sonha o sonho dos outros", "Mostre-me os dentes que tens que eu te direi de que classe vens", "A máquina da vida costura desapontamentos", "Economista é como aeromoça: vive pedindo para apertar o cinto", "Atrás de muito lambe-lambe vem muito morde-morde". A crônica "Tônico cerebral" faz inclusive desfilar, dentro do desenho de um frasco arrolhado, uma sucessão de ditados dos quais o meu preferido é o que explica que "A mentira tem pernas curtas para escapar mais facilmente por entre as pernas longas da verdade".
Ao dar pernas longas à verdade para contrapô-la à mentira, cujas pernas são curtas segundo a expressão proverbial, Ferrarini exibe seus dotes de poeta. Pois todo poeta digno do nome sabe desentranhar de uma metáfora, por mais cediça que possa ser, novos significados. A crônica "Animais Pagam o Pato" dá bom testemunho disso ao chamar-nos a atenção para o fato de que, quando forja expressões como "amigo da onça" ou "lágrimas de crocodilo", o homem transfere aos bichos suas próprias imperfeições morais ou físicas. Ainda nessa ordem de idéias, lembra o cronista que o mesmo homem usa animais para fazer trabalho escravo, como as abelhas que, sem salário nem direito a férias, lhe dão mel de graça, ou como as minhocas que, igualmente sem paga, lhe fertilizam a terra de plantio.
Outro recurso poético de que se vale o autor de "Crônicas da Cidade Pequena" é o que se poderia chamar ótica da ingenuidade. Ou seja: descrever, como se os estivesse vendo pela primeira vez, fatos que, por sobejamente conhecidos, já nem despertam mais a atenção do comum das pessoas. Um trecho de "As Ruas da Cidade", com o subtítulo de "A Rua dos Meninos", ilustra a eficácia de recurso: "Meninos de rua que nascem na rua, crescem na rua, aprendem na rua, dormem na rua. Seus brinquedos são armas de verdade. Suas verdades são armas de mentira. Para sobreviverem enfrentam a vida com os próprios punhos. Repetidas vezes são levados para Casas de Menores, mas sempre acabam voltando para as suas verdadeiras casas: as ruas." Se bem a citação fale por si, vale a pena sublinhar a força expressiva das oposições brinquedo x armas, verdade x mentira, que mais adiante irão dar força dramática ao adjetivo de "verdadeiras casas".
A ótica da ingenuidade avulta também em "Leia Este Artigo de Pé", cujos efeitos humorísticos lembram os disparates involuntários de certas composições escolares mais canhestras. O cronista começa por descrever o pé -e na página há, em preto, a impressão de uma planta de pé- como um "acessório" que já vem pronto da indústria. Daí soar natural, aos ouvidos mentais do leitor, a comparação do pé com um outro acessório de locomoção, o automóvel, o qual sai diminuído do confronto: "O pé tem câmbio hidramático e faz cerca de mil quilômetros por cada par de calçados. (...) Soma-se aí a vantagem de pé não requerer seguro contra roubo ou extravio -até hoje não há nenhuma notícia de que um pé foi roubado e foi levado para ser revendido no Paraguai. / Outra vantagem é que não se perde tempo com manobras demoradas para tirar o pé da garagem. O pé também não enfrenta apertos por falta de estacionamento ou engarrafamentos no trânsito. O único aperto é o sapato apertado. / Além disso, o pé dispensa calibragens regulares. (...) Mais que nos manter de pé, o pé ainda nos leva qualquer lugar, sem nos deixar a pé. E de graça!"
Em algumas de suas crônicas, Ferrarini fornece ao leitor informações pitorescas. Não por amor de pitoresco em si, mas porque dele se podem tirar conotações humorísticas. Assim é que, ao comentar os percalços dos canhotos no mundo dos destros, ele lembra que em grego canhoto significa demônio, em latim estranho ou maligno, em inglês abandonado, em anglo-saxão inútil. Outrossim, no céu da Bíblia os bons se sentam ao lado direito do Pai, Barrabás foi crucificado à esquerda de Cristo e os árabes consideram suja a mão canhota, que os hindus só usam para lavar a parte inferior do corpo, reservando a direita para a lavagem da parte superior ou nobre.
O humorismo das "Crônicas da Cidade Pequena" não teme voltar-se nem sequer para a profissão de quem as escreve. Assim é que, em "Instrumentos de trabalho", ao enumerar as ferramentas principais de cada ofício, o cronista conclui a enumeração com o lembrete de que "o instrumento de trabalho do escritor é o cesto de lixo". E em "Quem São Nossos Inimigos?", ao referir-se a bichos detestáveis que vivem na imundície, como baratas e ratos, ele redime da detestabilidade os porcos. Isso porque, embora vivam também na imundície, "são apreciados depois de mortos, como acontece com os escritores."
Eu não poderia terminar este sumário levantamento de alguns dos pontos altos do livro de Flavio Luís Ferrarini sem transcrever uma tabela comparativa que ele, após confessar-se sobrevivente da Geração Goma de Mascar, elabora para mostrar o quanto a sua ficou aquém da geração que a sucedeu:
Geração Goma de Mascar:
"A primeira palmada; a primeira calça comprida; a primeira comunhão; o primeiro passarinho morto; o primeiro pêlo pubiano; o primeiro beijo roubado; o primeiro salário mínimo; a primeira bicicleta aro 16; o primeiro filho; o primeiro fusca; o primeiro cabelo branco."
Geração Coca-Cola:
"A primeira chupeta térmica; o primeiro tênis anti-roubo; o primeiro video game; a primeira mountain-bike; o primeiro porre; a primeira camisinha; a primeira mesada; a primeira motocicleta; a primeira perna engessada; o primeiro aparelho de dentes; a primeira herança."
Espero que as citações até aqui feitas das crônicas de Flavio Luís Ferrarini hajam bastado para mostrar que ele tem talento e verve bastantes para atuar na chamada grande imprensa. Esta, como os grandes times de futebol que vão buscar tantos dos seus craques nos times de várzea, deveria também ter olheiros atentos à imprensa interiorana. Faço votos que não tarde muito o dia de "O Florense" estar às voltas com o problema de calcular o valor do passe de seu cronista-mor.

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