São Paulo, segunda-feira, 10 de junho de 1996 |
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FERNANDO GABEIRA
Recém-chegado - Salve, irmãos. Acabo de deixar a clínica Santa Genoveva. Morri de uma overdose venenosa: água. Pernambucano - Salve, irmão. Também eu morri do mesmo veneno, em Caruaru. Mas foi na veia. Tomei nos canudos. Faleci. Recém-chegado - Os médicos nada fizeram. Apenas um piriri, diziam. Quanto mais se constipavam, amantes do dinheiro, repetiam: apenas um piriri. Pernambucano - Os médicos me diziam: "Vá ao oculista. Deve ser coisa dos olhos". E, quanto mais cegos se sentiam, mais gritavam: "Coisa dos olhos, irmão". Sem-terra - Vocês foram aos poucos, sofreram. Eu não. Senti a bala na nuca e pronto. Os médicos foram unânimes, irmão: morri. Sartre - Nesse mundo absurdo não há outro caminho. Cravar as unhas no abismo, resistir. Camus - É preciso se rebelar. Há uma peste naquele país. Rebelar-se, mas com um pé atrás: nem vítima, nem carrasco. Sartre - Como assim? Sutilezas agora interessam aos assassinos. Camus - Os sem-terra querem um estado socialista. Você imagina a tragédia que pode estar por trás disso? Sartre - Não importa o que querem. São companheiros de viagem. Recém-chegado - Eu tinha uma companheira, a Maria do Amparo. Deixei ela bem doente. Pernambucano - Conosco também foi assim. Não morria todo mundo de uma vez. Era aos poucos, em fila indiana. Sem-terra - Conosco foi de uma vez. Camus - Mas é assim a peste. Começa alguém caindo na rua. Depois vão os outros. Sartre - Esta peste tem nome. Não é doença que ataca de repente. O nome é história, meu velho; a opressão de classe. Camus - Mas lá tem Sol. A miséria me impediu de crer que tudo está bem debaixo do Sol: o Sol me ensinou que a história não é tudo. Sartre - Nesse caso, é. O céu é globalizado por excelência. Veja os fantasmas dos mortos acidentais na Libéria, veja os mutilados pelas bombas no Oriente Médio, as explosões mandam todos para os ares: só aqui incluímos os excluídos de lá. Pernambucano - Nós que morríamos por falta d'água. Agora somos envenenados por ela. Recém-chegado - E nós que morríamos de indiferença, uma doença seca e gelada, morremos da água da fonte. Pernambucano - A morte é coliforme, meu irmão. Sartre - É morte ao cubo, ao fungo, algas e bactérias. O que importa é estarmos aqui, tentando achar um sentido. Recém-chegado - Vi uma menina nascendo na pia do hospital. Camus - Como? Recém-chegado - Não havia lugar para ela, nem cama para a mãe. Ela nasceu ali mesmo, como um vazamento no cano. Espirrou para a vida, meu irmão. Camus - É o milagre de todo dia. Sartre - É um sentido para nossa luta. Recém-chegado - Mas o ministro nada pode fazer. Os donos de hospitais querem mais dinheiro. Daqui a pouco, não haverá nem pia para nascer. Sem-terra - Como não há terra para plantar. Pernambucano - Nem rim pra transplantar. Sartre -Detesto lamentações. O caminho é mudar o destino. Recém-chegado - Se nascesse numa pia, viveria loucamente. Morreria como os meninos do tráfico: antes dos 18 anos. Camus - Compreendo: o suicídio é uma grande questão. Pernambucano - Morri aos pouquinhos ou vivi aos pouquinhos? Sem-terra - Aqui não há excluídos. Não vejo o movimento dos sem-céu. Temos de construir o paraíso na Terra. Camus - Isso me dá arrepios. Recém-chegado - Isso me dá sede. Sartre - Oh, não. De novo esse vício? Lembre-se de que morreu de uma overdose. Pernambucano - Pernas pro ar, que ninguém é de ferro, dizia Ascenso. E aquela água. Que vontade de cantar: você tem quase tudo dela, o mesmo sorriso, a mesma flor... Sartre - Está falando da maconha? Camus - Ou do cânhamo? Pernambucano - Falando de nada. Perdemos o peso. Somos imponderáveis agora. Não encham o saco. Recém-chegado - Ah, se nascesse de novo, naquela pia, se escapasse das chacinas de crianças e chegasse aos 18. Eu, Maria do Amparo. Camus - Gosto desse nome: Maria. Pernambucano - Ou teu nome principia, na palma da minha mão. Recém-chegado - Cor do céu e cor do dia... Sartre - O marxismo é o horizonte insuportável do século 20. E vocês cantando Maria... Recém-chegado - Irmão, hoje somos companheiros de viagem, como ontem fomos de incontinência urinária. Maria também começa com M. Nascer como um esguicho do cano, morrer como um avião, aos 18. Camus - O suicídio é único grande problema. Pernambucano - O São Francisco, sim, é o grande problema. Sartre - Senhores, acabamos de perder o nexo. Vamos descansar. Texto Anterior: Cary ordena a loucura Próximo Texto: Bares têm 'jam session' de sambistas Índice |
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