São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 1996
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Antipatia

ANDRÉ LARA RESENDE

Procuro sinceramente manter uma certa isenção na avaliação do governo e da política econômica. O apreço pela capacidade analítica serve de antídoto à tentação do torcedor. Tenho, contudo, grande afinidade com a agenda do governo Fernando Henrique.
É público e notório, acredito. Às vezes discordo, até me irrito, mas tenho simpatia pelo governo.
Pergunto-me o que provoca simpatia ou antipatia por um governo e pelas figuras públicas. É claro que a identificação com suas prioridades e seus objetivo, o fato de compartilhar a mesma visão de mundo, são fatores importantes. Mas desconfio que há muito mais do que isso.
Há de fato uma questão química, em grande parte incapaz de ser explicada com base em argumentos racionais. Um tortuoso processo psicológico de identificação ou de rejeição da persona pública dos homens que representam o governo, e do presidente em particular, parece ser tão ou mais importante do que qualquer dado objetivo.
A observação me ocorreu ao me deparar com homens -e mulheres, faço questão de explicitar- inteligentes e críticos ferozes do governo. Até aí nada demais. Por mais simpatia que eu tenha pelo governo, ainda não cheguei ao ponto de considerar que haja aí uma contradição lógica.
Mas o que impressiona é que, em muitos casos, a crítica parece desprovida de toda objetividade. Não se discorda de forma fundamentada e organizada e não se tem nenhuma plataforma alternativa clara. O que chama atenção é, sobretudo, a intolerância e a razão obliterada pela paixão. É caso de antipatia mesmo.
Sei bem que a política -talvez só superada pelo futebol- não é exatamente o terreno da objetividade e da racionalidade. Nada de novo, portanto. Mas tenho a impressão de que este governo, e a figura de Fernando Henrique em particular, andam a provocar mais antipatia do que seria razoável.
Na semana passada, na posse de Antonio Kandir no Ministério do Planejamento, Fernando Henrique fez um discurso de improviso. Uma amiga jornalista -que não tem antipatia pelo governo- presente ouviu, achou que era uma peça representativa das sutilezas da alma tucana e fez questão de me enviar a transcrição.
Curto, o discurso começa falando de emoção para agradecer a participação de Serra no governo e termina observando que ter entusiasmo -palavra mencionada por Kandir- etimologicamente significa ter Deus introjetado.
Conclui que para mudar é preciso ter entusiasmo, ter Deus introjetado. Um certo arroubo retórico, digamos assim, mas nada grave, vamos e venhamos.
Pois bem, a Folha deu manchete de primeira página afirmando que Fernando Henrique dissera ter Deus introjetado. O ombudsman, no domingo, criticou. Diz que é a velha mania de dar destaque ao anedótico. Pode ser.
Se o discurso pouco me iluminou sobre as ditas nuances da alma tucana, a sua cobertura pela Folha não me deixou mais dúvida: o jornal tem uma indisfarçável antipatia pelo governo e por Fernando Henrique em particular.

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