São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 1996
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Latifúndio: um paraíso fiscal

JAQUES WAGNER; JOÃO PEDRO STÉDILE

As megapropriedades rurais (acima de 500 mil hectares) brasileiras não pagam absolutamente nada de ITR
JAQUES WAGNER e
JOÃO PEDRO STÉDILE
O governo renunciou à arrecadação de cerca de R$ 1,5 bilhão com a determinação de suspender os lançamentos do ITR (Imposto Territorial Rural) referentes ao exercício de 1995. Esses recursos totalizam exatamente o dobro do orçamento total do Incra para esse ano. A instrução normativa de nº 16, de 28/3/96, da Secretaria da Receita Federal (SRF), que propôs a renúncia, contrariou propostas das áreas técnicas para o reparo de eventuais distorções no cálculo do tributo. Se o R$ 1,5 bilhão fosse de fato destinado ao Incra, poderia financiar o assentamento de, pelo menos, 100 mil famílias de sem-terra por ano, meta jamais alcançada por nenhum programa.
O argumento utilizado para essa decisão do governo, forçada pelos setores latifundiários por meio de sua ampla base de representação no Congresso Nacional, baseou-se na alegada supervalorização da base de cálculo do imposto, o VTN (Valor da Terra Nua) -posição de 31/12/94)-, relativamente aos preços de mercado da terra que, de fato, experimentaram declínio ao longo do ano de 1995.
Registre-se que, por ocasião da suspensão da cobrança do ITR, 60% do total dos contribuintes -pequenos produtores rurais- já haviam honrado o pagamento do imposto. Enquanto isso, o nível de inadimplência dos proprietários dos imóveis rurais com área superior a 48 mil hectares alcançava 99,7%. Ou seja, os grandes beneficiários da medida foram os caloteiros contumazes do ITR: os latifundiários.
A rigor, o VTN utilizado para o cálculo do ITR/95 manteve-se nos estritos limites fixados pela nova legislação sobre a matéria (lei nº 8.847/94), que tenta resgatar o mínimo de eficácia para o tributo. A elevação observada nos valores lançados deveu-se, na realidade, à exacerbação dos valores cobrados a título de contribuição sindical, em benefício preponderante do sistema sindical patronal rural.
De acordo com informações da SRF, na data da suspensão dos lançamentos do ITR já haviam sido repassados R$ 25 milhões para a entidade-maior de representação dos latifundiários, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que, segundo a mesma fonte, embolsaria, neste ano, R$ 70 milhões, curiosamente provenientes, na maior parte, das contribuições dos pequenos produtores rurais.
1) No período de 1980 a 1994, a participação média do setor agropecuário no PIB nacional foi superior a 11%. No entanto, no mesmo período, a fatia do setor no bolo da receita do Imposto de Renda alcançou apenas 0,5%. De acordo com dados da Receita Federal, o índice de sonegação do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) do setor agropecuário alcança cerca de 70%.
2) Pesquisa executada pelo Ipea, em 1993, sobre o "mercado de terras", patrocinada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), informa que os maiores devedores do ITR acumulavam dívida, apenas no período de 1990 a 1993, de R$ 3 bilhões. E o que é mais grave: sem ser molestados pelo governo.
3) Em 1994, os 203 maiores imóveis rurais do país (áreas acerca de 48 mil hectares) deixaram de recolher R$ 231 milhões, ou seja, 50% da inadimplência total do ITR naquele ano.
4) Atualmente, existem registrados no Ministério da Fazenda, na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e na Secretaria da Receita Federal um total de R$ 3 bilhões de ITR, correspondentes a créditos tributários devidamente constituídos, não pagos e não cobrados pelo governo FHC.
5) Em relação ao PIB, a carga tributária média efetiva sobre a propriedade da terra no Brasil tem sido de 0,00016% (PIB/IBGE: R$ 654 bilhões). A mais baixa do planeta. Na Coréia do Sul, a tributação da terra alcança 12% do PIB; na Espanha, 4%; na Alemanha, 4%; e, na Argentina e no Uruguai, 2%.
6) As megapropriedades rurais (acima de 500 mil hectares) não pagam absolutamente nada de ITR.
Portanto, diante desses fatos, só podemos concluir que, com mais esse ato de rendição de FHC aos ruralistas (suspensão do ITR/95), associado à postura autodenunciadora do secretário da Receita, ao afrontar a inteligência do povo brasileiro declarando a inviabilidade do tributo (Folha, edição de 19/5/96), mantém-se a hegemonia política secular do latifúndio.

Jaques Wagner, 44, é deputado federal pelo PT da Bahia. Foi líder do PT na Câmara dos Deputados (1995).

João Pedro Stédile, 42, especialista em economia agrária, é da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

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