São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
Próximo Texto | Índice

"Eu digo Aids"

ZULMIRA RIBEIRO TAVARES

No texto de Jean-Claude, "A Doença, uma Experiência", o título se apresenta com a sobriedade de um "paper" para simpósio. Contudo, pode ser lido de algumas maneiras: apontar para a descrição da experiência do que vem a ser genericamente o estado de doença; ou tratar, mais uma vez, da forma escamoteada de se designar alguma doença grave, cujo temor a ela seria parcialmente anulado pela supressão do nome. O artigo então indicaria aquela doença e nenhuma outra; aquela doença que sabemos muito bem qual é: "a" doença por excelência.
Penso que, na obra, o termo doença que se anuncia no título designa ambas as coisas e vem somar-se ainda a uma terceira acepção: assim, ali a doença é síntese de todas as doenças, da experiência na doença; mas é, também, a qualificação, pela subtração, da doença tão temível que nela o nome, se aflorasse, duplicaria o seu horror. E, por fim, sem excluir os outros sentidos, o termo indica principalmente a suspensão, provisória que seja, do seu nome; uma astúcia, um convite ao conhecimento, não sua recusa; já que o personagem narrador, olhando-a de frente, irá ao longo do livro dar conta dela; nomeá-la no curso das perdas, achados e ganhos de quem a leva consigo. "A doença" terá então o seu nome claramente definido e reiteradamente apontado, ganhando mesmo uma carta de princípios na pág. 35, quando o narrador afirma com todas as letras: "Digo AIDS, e não digo doença, digo SOU AIDÉTICO, e não digo Estou doente ou Sou portador do HIV."
Voltando ao "paper". Esse, simples na sua proposição acadêmica, "uma experiência", mostra-se, logo abaixo do título estampado na capa, desautorizado, quando a indicação do gênero a que pertence passa, do vago simpósio que surgia como seu habitat natural, para o espaço da ficção. O que a obra é, e surpreendente.
Contudo, ficção que é, acena com uma âncora biográfica bastante nítida. Eu, todos nós que conhecemos o autor, menos ou mais, descobrimos no personagem narrador e em Jean-Claude alguns traços em comum muito claros. Outros, que têm um relacionamento maior com ele, poderão procurar na obra, em pessoas e eventos narrados, correspondências de um para um, perfeitamente paralelas; entre o dentro e o fora da ficção, confirmações ou alterações de registro. Contudo, acho que a coisa não é por aí. Todavia, em um segundo plano, afastado da superfície, é óbvio que passa exatamente por aí. Pois essa âncora biográfica, nítida e ostensiva como um anúncio, enraizada no coração mesmo da "doença" (dela procurando arrancar um nome e uma experiência) apenas indica, à sua maneira particular (de quem nega e afirma a própria condição), a presença indiscutível do autor -qualquer autor- no próprio cerne da escrita de um trabalho de ficção.
Assim, o título da obra junto à definição do seu gênero, se para quem não a leu ainda pode soar um tantinho enigmático, ou maroto, ou ser simplesmente desatendido, para quem dela toma conhecimento se alimenta do conjunto dos possíveis acordos entre biografia e invenção; melhor, da relação entre dados fatuais e invenção. Um ponto de apoio para se analisar por que o livro resulta afinal de contas tão vivo e interessante. O seu assunto momentoso, a credibilidade e notoriedade do autor, podem surgir como pré-requisitos, entradas para o interesse, que é despertado de imediato. Mas, e depois?
O conhecimento da AIDS já tem bom tempo. Ao longo desses anos tornou-se a menina dos olhos da ciência aplicada, também o centro das discussões sobre equipamentos e serviços sociais, assim como das reportagens (didáticas ou aparatosas) da mídia (principalmente televisiva), dos enredos de filmes e novelas. Aos poucos, depoimentos de aidéticos aumentaram a ponto de permitir que desse acervo de experiência acumulada (e que pelas circunstâncias não pôde se constituir a não ser sob a luz dos holofotes), brotasse uma contra-reação irônica, simbolizada, a meu ver, na ótima figura cunhada por Serge Daney (citado por Jean-Claude na pág. 60): a diva da AIDS ("une diva du Sida").
Como Jean-Claude é civilizado, sabe das coisas, sua prosa, mesmo quando desce à descrição dos acenos e acentos mais íntimos de uma expressão singular, não poderia deixar, como não deixa, de estar marcada pela história da própria doença e da sua cultura, na qual se inclui naturalmente, com peso, a contra-reação irônica -(a reação à hiperexposição e ao patético) que ele consegue, com espírito, combater, incorporar e renovar-, o fantasma da diva. Assim, o personagem ora faz o impossível para se tornar um fenômeno; ora se acredita participando de um corpo de elite, ora admite ser um super-herói de histórias em quadrinhos. Essa alternância de papéis, e o descrédito que cada um merece logo após ser sugerido, marcam o curso da escrita com a melancolia da identidade provisória, que a nova situação o faz viver, e o humor de que se reveste.
As coisas do conhecimento de forma geral surgem na escrita em registros dissociados (não seguem o fio de nenhum discurso canônico), surpreendendo a novidade da combinação entre a zona de sombra que envolve a suspeita de como se desenrola a subjetividade de uma experiência limite, e o exterior dos juízos e notícias do mundo que o narrador utiliza para nomeá-la. O descompasso entre as quatro paredes de um corpo colhido pelo inesperado, e o grande arco da História, tinge esses momentos com o leve tom da farsa. Por exemplo, quando o personagem é elogiado pela boa aparência, o que leva amigos a dizerem que ele os irá enterrar a todos, se irrita com os comentários por sua leviandade, e estabelece uma analogia entre as usinas Krupp e ele; a AIDS e o capitalismo. Lembra que assim como não basta ver as fachadas das usinas para compreender o capitalismo, não basta vê-lo com boa aparência para daí deduzir o futuro da AIDS no seu corpo (pág 50). Em outro momento, perguntado pelo médico como havia ocorrido a contaminação, rechaça essa possibilidade de investigação do passado, jogando suspeição sobre "o mito das origens" (pág. 8). Ao romper uma expectativa (talvez de introspecção sisuda), o autor impede qualquer automatismo de leitura, e ajusta o que está sendo dito ao essencial. Uma exposição de natureza tal que precisa ser nova a cada instante para valer a pena ser dita.
E rápida, pois nasce do impulso de uma vitalidade intensa, conquistada a partir do estranhamento da vida cotidiana adquirido com a consciência da doença. Assim, o nervo de uma impaciência marca o conjunto do relato em uma escrita veloz. As avaliações nele existentes parecem sumárias à primeira vista, contudo são exatamente o oposto. Por trás, uma inteligência insatisfeita está sempre ajustando, modificando, melhorando ou negando a afirmação anterior. As frases são curtas, claras, limpas, mas pelo inesperado do que vão dizer em relação ao que já foi formulado surgem como pequenas síncopes. Pois se há na exposição um substrato que, por falta de termo melhor, eu chamaria de informação direta, prevalece contudo nela outra ordem de assertivas que desnaturaliza o conjunto do que vem sendo contado e pode iluminar o trecho mais singelo com a graça de um "objet trouvé" e a surpresa de uma descoberta. Como no caso da agenda eletrônica, a qual pela importância na vida do personagem, sempre cantando dia e noite a hora dos remédios, "virou prótese". Também o informe sobre a contaminação é apanhado logo no início sob nova luz, perdendo parte de sua carga negativa, sua malignidade, por dar primazia, em tom casual, à imposição do desejo e do amor em prejuízo das intemperanças do vírus: o personagem não pensaria em "cortar a foda" justo com o "virtuose da foda" que praticava fodas geniais. O amor pelo amante era tanto que possivelmente ambos se julgavam "imunes um ao outro". Transavam por fora também, mas então se protegiam.
Da soma dessas afirmações ergue-se para o leitor, desafiadora (e com certo simpático tom de bravata), a circulação do desejo, rechaçando o medo, abrindo-se sempre mais para outros parceiros, como um complexo número levado com desassombro por treinados ginastas, ou a galharia de copada árvore amorosa. (Não é preciso insistir que o tema da contaminação, razão de ser da obra, afinal, nela se manifesta por meio de muitos outros sentidos e imagens).
Em uma ficção de acentos tão variados, cujo encadeamento de situações, conceituações e sensações transmite o próprio movimento da reorganização da experiência -talvez nela se possa distinguir uma pausa, uma abertura para o silêncio. Como um convite à escuta; isso quando o personagem diz: "sei profundamente que estou doente, sei que estou profundamente doente" (pág. 50). A formulação nem chama a si a piedade, não é depressiva nem estimula a desesperança. Antes faz recordar o quanto a alta qualidade de uma prosa literária deve à vontade e à capacidade do autor em não calar o que merece ser narrado.

Próximo Texto: Estratégias para o próximo milênio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.