São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Temas e tempos de outrora

VALERIA DE MARCO

Nestes tempos em que ecoam os arautos do fim da história, em que desilusão é vício de fim de século, parece extremamente oportuna a reedição das "Memórias do Sobrinho de Meu Tio", escritas entre 1867 e 1868. A obra pode ser uma ocasião para revisitar o passado, movimento prazeroso e descompromissado tão caro aos moços de hábitos ilustrados. Mas, ao registrar procedimentos cotidianos usados naqueles tempos na administração das coisas públicas, ela pode abrir a possibilidade de reconhecermos a relação orgânica entre aquele passado e as manchetes dos jornais de hoje.
O volume traz pauta para desocupados e preocupados leitores: conhecer melhor Macedo, reavaliar sua inserção no romantismo e indagar-se sobre as relações entre nossos intelectuais e as instituições políticas.
A maioria do público identifica Macedo ao romance "A Moreninha", que inaugura o gênero no Brasil. A identificação é legítima, pois o livro, que foi best seller no seu tempo, sempre esteve nos programas escolares. Mas o escritor explorou vários gêneros, escrevendo 16 romances, muitas peças de teatro, poesia, crônicas romanceadas, compêndios de história do Brasil etc.
Para aqueles que associam Macedo a um açucarado enredo cheio de peripécias e a uma crônica amena da vida do Rio de Janeiro da segunda metade do século 19, as "Memórias" podem surpreender. O enredo é ralo e não gira em torno de paixões amorosas. A obra é uma sátira política cujo eixo consiste em o narrador -o sobrinho- contar e pôr em cena o trajeto percorrido por ele para transformar-se num político, vale dizer, para eleger-se deputado.
O texto é continuação de outra sátira, escrita em 1855: "A Carteira de Meu Tio". Aqui, o sobrinho narra sua formação, sua preparação para a carreira de político, a única que lhe permitiria bem viver e pouco trabalhar. Macedo arma a sátira explorando o fosso existente entre o caráter oportunista do sobrinho e planos ou conselhos do crédulo tio, um defensor da constituição. O tio investira na formação do moço, pagando-lhe estudos na Europa e outra viagem de burrico para conhecer seu país. O jovem anota na carteira que sua pátria é "terra dos compadrescos e dos afilhados".
As "Memórias" começam com a morte do tio. O sobrinho casa-se com a prima Chiquinha e lança os pilares de sua carreira: consegue que a herança fique em família e ainda padrinhos de bodas que seriam padrinhos políticos. A moça nada tem de heroína romântica. Ela e o marido formulam os planos e os põem em prática; tudo em função do parlamento e do título de baronesa. O enredo ralo serve de suporte a diálogos, ora entre vários convivas, ora entre o casal; conversas animadas nas quais, a partir de certa altura, estará sempre o compadre Paciência -a voz defensora dos princípios, que já aparecera na "Carteira".
Assim, organizam-se e travam-se os debates sobre as questões decisivas na instabilidade do Império: a guerra do Paraguai, a crise financeira, a questão da escravidão, as trocas de gabinetes, os limites do poder moderador, a política da conciliação, o sistema representativo, a corrupção que atravessava as nomeações para qualquer função ou que se explicitava em fraudes eleitorais ou bancárias. E prepare-se o leitor, pois a atualidade dos problemas pode surpreender.
Desta forma, a nova edição da obra permite que um público mais amplo que os estudiosos do século 19 conviva com um traço fundamental do romantismo: a estreita vinculação entre literatura e política. Tempos de deputados ilustres: Sue e Lamartine, Alencar e Macedo.
Para que o desocupado leitor possa desfrutar a convivência com o passado, é de fundamental importância o trabalho de Sussekind. Ela elaborou com critério, rigor e sobriedade as notas que esclarecem o texto, tanto no que se refere a certas expressões, como nas alusões a fatos da época. Mas seu trabalho não se limita a isso. Para os leitores preocupados com as questões propriamente literárias, há no prólogo importantes considerações sobre o romance.
De um lado, encontram-se tanto a inserção das "Memórias" na tradição da sátira política do século 19 quanto um rastreio dessa temática no conjunto da obra do autor. Por outro lado, cabe ressaltar que as observações sobre a estrutura do romance apresentam problemas interessantes para críticos e historiadores da literatura. Referem-se elas a dois aspectos: no enredo econômico haveria uma certa sátira ao poderoso enredo romanesco dos tempos românticos e no perfil desse atrevido sobrinho narrador em primeira pessoa estaria um embrião do método de composição de Machado de Assis a partir de "Brás Cubas".
Quanto ao criterioso trabalho da organizadora, cabe apenas o reparo de que, no amplo quadro de referências mobilizado por ela, nota-se a ausência de Alencar, pois deve se considerar que ele não só acompanhou o tom e os temas das "Memórias", como também adotou a sátira em alguns romances em que cifrava a história de seu tempo em enredos de episódios passados, textos em que às vezes um narrador em primeira pessoa também enfia seu nariz, como na "Guerra dos Mascates". E, à primeira vista, Alencar é água para o moinho de Sussekind.
Ainda uma observação para os leitores que ficarem preocupados com a atualidade das críticas de Macedo. Pode ser grave constatar que os motes da sátira romântica continuam presentes no nosso cotidiano: a dança dos partidos e de seus membros, a fraude bancária e a eleitoral, o peso das relações de compadrio e parentesco nas decisões do Estado, a cooptação de intelectuais da oposição, a exclusão das classes subalternas do debate político. Mas preocupante mesmo é que, aparentemente, a forma do debate também permanece: a sátira continua a ser nosso estilo de crítica mais cultivado. Basta comparar a contundência das charges dos nossos jornais com a prosa frouxa das matérias ou dos artigos. E como questão de gênero nunca é mera questão, considere-se que a sátira se presta a denunciar mas não a analisar. O riso dilui a tensão e adia o confronto. Até quando nossa história continuará a fazer-se com a velha prática da conciliação?

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