São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Dilemas de um professor apaixonado

JORGE ALMEIDA

Antes da Semana que escandalizaria São Paulo, Mário de Andrade encerrava seu curso de estética no Conservatório Dramático e Musical lembrando aos alunos da turma de 1921 que não tivera como objetivo "arregimentar novos discípulos sob a bandeira da revolta", mas apresentar de maneira sistemática "o que se passa em centros mais cultos". A experiência como professor de história da música o havia convencido da necessidade de introduzir no país uma reflexão mais acurada sobre questões fundamentais da estética contemporânea. Mas, em um centro que já se considerava culto o suficiente, seus colegas não concordaram com tamanha ousadia. Com a reforma curricular do Conservatório, a cadeira de estética foi extinta.
Logo em seguida, em fevereiro de 1922, as vaias ecoam no prédio vizinho. O recém-nomeado professor catedrático perde os alunos e o respeito dos colegas, e só pouco a pouco recupera o prestígio. O curso de estética é retomado apenas em 1925, fora do ambiente conservador da instituição, em aulas particulares para "um grupo de moças da nossa alta sociedade". Mário sempre retornou às anotações utilizadas nos cursos, pensando em publicar um livro didático nos moldes da "Pequena História da Música".
O projeto foi, porém, abandonado, e apenas graças ao enorme esforço de pesquisa de Flávia Camargo Toni temos hoje a idéia de como seria este livro, reconstruído a partir do material deixado por Mário e dos cadernos de suas alunas.
Mesmo inacabada, a "Introdução à Estética Musical" é um documento importante da atuação de Mário de Andrade no magistério e mais uma oportunidade para se pensar as eternas contradições da vida cultural brasileira. O texto mostra as dificuldades do fundador do Desvairismo em tentar conciliar a rebeldia criativa com o papel de jovem professor da tradicional instituição paulistana. As contradições entre o mundo acadêmico e o grupo modernista são analisadas no brilhante prefácio da professora Gilda de Mello e Souza, a partir de duas fotos da época. Entre seus colegas professores do Conservatório e entre os amigos modernistas, o mesmo Mário, o Mário que era trezentos, trezentos e cinquenta.
O livro traz as marcas deste dilema. Nas primeiras lições, o jovem e erudito professor expõe e avalia as correntes em voga, do cientificismo positivista de Charles Lalo ao formalismo neokantiano inspirado em Hanslick, passando por Combarieu e Riemann. O resultado, exposto no mais tradicional estilo tratadístico -sempre ridicularizado pelo Mário poeta- é uma tentativa de sintetizar o melhor de todas as influências.
O resultado pode ser visto na definição, literalmente monstruosa, de belo: "Belo é uma circunstância fisiológica que agrada imediatamente a uma necessidade superior e sem interesse prático do ser racional".
Mas o Mário de Andrade modernista parece não aguentar tantas certezas, e finalmente o professor leva a sério o conselho que deu aos alunos: "O que carece no aprendizado duma teoria é saber ignorá-la em seguida". É isso que ele faz, no surpreendente quinto capítulo do livro, uma grande meditação pessoal, que destoa da aridez acadêmica dos capítulos anteriores. Em carta a Manuel Bandeira, publicada no apêndice desta edição, Mário relata o acontecido: "Engraçado: comecei muito direitinho, honesto, citando gente, não fazendo nada por mim, porém aos poucos fui largando os autores e afinal este último ponto saiu de mim".
O interesse maior do livro, para além de sua discussão datada sobre estética, está em ver o esforço do autor para conciliar estes dois momentos. Neste quinto capítulo, Mário desenvolve a idéia de arte como "mensagem-do-amigo", tema que percorre toda sua obra. O rigor cientificista do professor tradicional dá lugar a uma das tantas "lições de amigo" deixadas pelo mestre, que insiste na importância de uma relação apaixonada com a arte.
A expressão artística, cuidadosamente descrita páginas antes na melhor tradição da "finalidade sem fim", encontra afinal sua contrapartida interessada: "Amar é o motivo obrigatório de toda criação de toda expressão artística. Amar é a finalidade da obra-de-arte. Cabe ao ouvinte aceitar ou recusar esse amor. Se souber realmente ser ouvinte é certo que amará mais que odiará. O amor é tão fácil!..."
Procurando despertar em seus alunos o amor pela reflexão, Mário ressalta que as estéticas não são frias obras do pensamento; por compartilharem a vida das obras de arte, devem também ser amadas. Caberia então relembrar, a respeito deste livro, as célebres linhas que o professor Antonio Candido escreveu sobre a literatura brasileira. A lição de estética de nosso maior pensador musical é confusa, datada e repleta de contradições, mas "se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós". O amor é necessário, mas, por isso mesmo, difícil.

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