São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Kandir: limites ao ajuste fiscal

MAILSON DA NÓBREGA

Ajuste fiscal, no Brasil, é um conjunto de medidas destinadas a restaurar a capacidade de gestão do Orçamento por parte do governo federal e contribuir para a sustentação definitiva do Plano Real.
Os críticos do ex-ministro Serra, que o acusam de não ter realizado esse ajuste, transferiram suas esperanças para Kandir com um raciocínio simplista: como este não teria ainda as aspirações políticas daquele, poderia ser mais incisivo no corte de gastos.
Essas visões, a meu ver equivocadas, são fruto do desconhecimento das regras do Orçamento e de uma expectativa ingênua, mas sempre presente, de que os problemas do país se resolvem com superministros.
Na posse, Kandir reforçou o raciocínio. Ele disse que três palavras irão balizar sua ação no Planejamento: austeridade, austeridade e austeridade. Válidas como retórica, as palavras nada garantem. Um novo regime fiscal não depende apenas de vontade política.
O problema é que a Constituição de 1988 determinou o gasto obrigatório de mais de 90% da arrecadação federal em apenas três áreas: transferências constitucionais, pessoal e assemelhados, e vinculações.
As transferências constitucionais a Estados, municípios e fundos regionais de desenvolvimento consomem 47% do imposto de renda e 57% do IPI.
Na área de pessoal e assemelhados pouco se pode fazer agora. Se a reforma administrativa passar, cairão os privilégios e o engessamento na gestão de pessoal. As economias imediatas serão, todavia, relativamente pequenas.
Quanto às vinculações, 18% de todos os impostos se destinam à manutenção e ao desenvolvimento do ensino e 100% de todas as contribuições sociais vão para o Orçamento da Seguridade Social. Se o governo federal não gastar diretamente, terá que fazê-lo por meio de repasses a Estados e municípios.
A Constituição meteu o Tesouro numa camisa-de-força sem paralelo na história e talvez no planeta. O ministro Kandir enfrentará, assim, os mesmos problemas de seus antecessores: uma luta infernal para gerir menos de 10% das receitas.
Esperar de Kandir mais do que ele pode, tem origem cultural. Influenciados por nosso passado autoritário, tendemos a achar que as ações do governo dependem mais de pessoas do que de instituições.
O ajuste fiscal seria, assim, mero resultado da escolha de um bom nome, que falasse grosso e soubesse dizer não. Todas essas qualidades, necessárias, significam pouco quando a Constituição obriga a dizer sim.
É verdade que o novo ministro tem muito a fazer. Cabe-lhe auxiliar o presidente a tourear as pressões para gastos, principalmente as provenientes da área política, e a resistir às demandas por reajustes salariais insuportáveis.
Kandir pode mobilizar vontades e capacidade gerencial para acelerar o programa de privatizações. Se os recursos forem aplicados na redução da dívida pública, como é correto, cairão os gastos com juros.
A estabilidade econômica está recriando o terreno para melhorar o planejamento orçamentário. Kandir pode aproveitar essa nova realidade para aumentar a eficiência do gasto público.
Passados quase dez anos do vendaval da Constituição e do desmonte caótico que ela provocou, é chegada a hora de repensar seriamente as funções do governo federal, reestabelecendo as que desapareceram apenas por força da crise.
A experiência administrativa e o trânsito parlamentar de Kandir constituirão valioso instrumento a serviço das reformas estruturais no Congresso, das quais depende o ajuste.
Conforta saber, a esta altura, que dificilmente a situação vai piorar. Segundo Raul Velloso, um de nossos grandes especialistas no assunto, os efeitos perversos da Constituição sobre o gasto público pararam de aumentar a partir deste ano.
Velloso rechaça previsões catastróficas sobre o déficit público e mostra que é possível mantê-lo sob controle por algum tempo enquanto aguardamos as reformas, que, como se sabe, virão lentamente.
Kandir pode realizar muito. É preciso, contudo, reduzir expectativas em torno de um ajuste fiscal para valer no seu período à frente do Planejamento.

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