São Paulo, sábado, 15 de junho de 1996
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Siron é visionário dotado de espírito prático

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Recebi outro dia, pela primeira vez na minha vida, uma carta-vídeo.
O próprio missivista deu esse nome à carta e nem podia dar outro, pois só depois de ligado o vídeo ouvi o "Meu caro Antonio Callado" e a voz do pintor Siron Franco me comunicando o assunto da carta, que era o de me dar uma idéia do seu "Monumento às Nações Indígenas", com 492 colunas, pelo próprio Siron fincadas e esculpidas.
Agora respondo eu aqui, Siron, que a carta foi lida, perdão, vista, e que fiquei com uma idéia excelente dessa obra que só mesmo você teria a audácia de fazer.
Além disso, me levando, antes de se despedir, até dentro do seu estúdio em Goiânia, você fechou magistralmente a vidente missiva.
Com sua voz e sua câmera você me deu um tratamento de turista "vip". Da sua obra ao ar livre, gigantesca e comovente, fui à gruta do mágico, sem me levantar da poltrona.
A história que explica essa carta-vídeo começa na exposição que fez Siron Franco no Museu de Belas Artes, aqui no Rio de Janeiro, em novembro do ano passado.
Sou velho admirador de Siron, mas ainda não o conhecia pessoalmente. E, apesar de estarmos cercados, no Museu, de uma coleção de quadros de Siron de grande porte e também de grande fascínio, não pude deixar de mencionar, logo que pude, seu "Monumento às Nações Indígenas".
Eu tinha visto fotos e lido textos sobre essa controlada alucinação que Siron pôs em pedra no cerrado goiano e que eu pretendo visitar.
Sem se fazer de rogado, Siron, mesmo interrompendo o que me contava para receber visitantes à exposição, lembrou que tinha sido levado a fazer o monumento depois de receber um telefonema do índio Idjarruri Carajá, que chefia um certo "Comitê Intertribal 500 Anos de Resistência".
Queria que Siron fizesse o monumento no Rio de Janeiro. Siron, que é um visionário dotado de abençoado espírito prático, disse a Idjarruri que já via o monumento diante dos olhos -um enorme memorial de pedra, um labirinto de pilastras-, mas em Goiás, no centro do Brasil, perto das nações indígenas que ainda povoam este país.
O que Siron não acrescentou, e acrescento eu, é que, além de estar perto dos índios, Goiânia, e mais precisamente Aparecida de Goiânia, é a boca do vulcão: ali fica o ateliê, ou um dos ateliês, de Siron Franco.
Combinado que o Monumento seria em Goiânia, "Siron entrou imediatamente no delírio que acompanha seu processo de criar", como escreveu o jornalista, íntimo amigo de Siron, Washington Novaes.
Mal falou com Idjarruri, conta Novaes, Siron Franco pensou nos 500 anos da descoberta da América, nos 492 anos da história dos índios e brancos no Brasil e viu logo brotando de suas mãos as colunas comemorativas.
Siron -manifestação imediata do lado prático- saiu de casa em busca dos recursos.
O empresário Roberto Coimbra Bueno doou ao monumento 12 mil metros quadrados de terreno. Leonardo Rizzo, da Federação das Indústrias de Goiás, recebeu a segunda visita de Siron, que precisava de US$ 200 mil para fazer colunas de concreto e pagar artesãos e operários.
Como a Federação pediu muito tempo para pensar, Siron vendeu uns terrenos que tinha, para começar logo seu trabalho.
O diabo é que apurou apenas US$ 28 mil. Era tão pouco, que outro empresário goiano, com pena dele e bom gosto artístico, se propôs a meter na empreitada US$ 100 mil -desde que Siron lhe desse o equivalente em quadros de sua autoria, no prazo de um ano.
Fechado o negócio na hora, com auxílio de sua mulher, também artista plástica, e do seu antigo professor de pintura, Cléber Gouvêa, Siron riscou no chão do cerrado o gigantesco mapa do Brasil onde se plantariam as 492 colunas que lá estão.
Em cada face de cada coluna de 2,10 metros de altura faria esculturas de sua própria invenção. Ou copiaria, das coleções dos museus de antropologia e artes indígenas, objetos de uso ou de rito, deuses, lagartos e pumas da América toda.
Usando 160 toneladas de concreto, Siron construiu o labirinto indígena em 128 dias. Estupefato, acompanhei Siron pelo meio daqueles pilares de pedra esculpida, ouvindo a voz dele, a carta oral, olhando os bichos, os totens, as aparições grudadas à pedra.
Durante todo o tempo ouvi também os passos de Siron-fotógrafo no cascalho entre as colunas e vi sua mão forte apontando e às vezes afagando as esculturas com as quais pôs a respirar aquele matagal de colunas.
Ninguém pensou em fazer comparações ou estabelecer recordes, mas duvido que algum outro trabalho da magnitude e graça do monumento tenha sido realizado em tão pouco tempo.
Quando terminou essa mais estranha das viagens que jamais fiz em minha própria sala, agarrado aos braços da cadeira, Siron avisou no vídeo que íamos em seguida visitar seu ateliê. Para um merecido repouso, pensei eu.
Acontece que no ateliê, além de uma linda louça que Siron também anda fazendo -como algum fino oleiro germânico da porcelana de Meissen, ou um italiano de Capodimonte-, há assustadoras figuras cujas cabeças são enxadas e cujo tórax é uma radiografia. Com essas figuras Siron está preparando um memorial dedicado aos sem-terra.
Pouco depois Siron (Gessiron, como foi batizado) despedia-se de mim, com sua voz mansa, amável. Estava acabada a carta.
Esta é a minha resposta, resposta meio pobre, estou sabendo. Mas nem eu haveria de querer, Siron, por escrito, responder à altura a uma carta cinematográfica e enfeitiçada como a sua.
Receba, sem mais, o abraço amigo deste seu admirador.

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