São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Entre pitos e exortações

ROBERTO CAMPOS

O Plano Real está na berlinda, internacionalmente, com dúvidas crescentes sobre sua sustentabilidade. Três pronunciamentos merecem comentários. O professor Rudiger Dornbusch, do MIT, diz que o mundo está cansado de esperar que o Brasil realize seu potencial. E questiona nosso ânimo reformista, de vez que estamos longe do saneamento fiscal, a privatização é lenta e a moeda está perigosamente sobrevalorizada. O professor Thomas Sargent, de Chicago, diz que não existe estabilização monetária sem saneamento do setor público e que a política de juros e a âncora cambial apenas compram tempo para que se efetuem as reformas estruturais. E agora o BIS -Bank of International Settlements-, uma espécie de banco central dos bancos centrais, alertou para a crise de confiança que se está espalhando no mundo e para os perigos de recessão em resultado do excessivo aperto monetário no combate à inflação. E mete também sua colher crítica na política econômica brasileira, ao dizer que o sucesso do Real não pode repousar apenas na manutenção de uma taxa de juros elevada, mas também requer disciplina fiscal.
O Plano Real trouxe aos analistas estrangeiros surpresa, preocupação e frustração. Surpresa, pelo êxito na queda rápida da inflação, mesmo antes do saneamento fiscal, pelo uso hábil de três instrumentos: desindexação, âncora cambial e altos juros. Preocupação, com os efeitos colaterais desses dois últimos instrumentos, que, eficazes no curto prazo, privam a economia do dinamismo das exportações e transferem o ajuste recessivo para o setor privado, precisamente o mais produtivo. Frustração, porque, com o atraso das reformas estruturais e das privatizações, o Brasil fica longe de realizar seu potencial. Poderia tornar-se um tigre e se comporta como uma anta...
O professor Dornbusch enfatiza sobretudo os perigos da sobrevalorização cambial, que tem sido a "nemesis" de vários planos de estabilização, ao torná-los vulneráveis a ataques especulativos. O problema é que hoje parece muito mais difícil que de antanho determinar e medir o desvio de taxas de câmbio. Por exemplo, se compararmos índice de custo de vida, segundo a velha teoria da paridade do poder de compra, os Estados Unidos são um país barato comparativamente ao Japão e Europa (e mesmo ao Brasil).
O dólar estaria grosseiramente subvalorizado. Mas se passarmos a um outro critério -o equilíbrio de pagamentos- os Estados Unidos, com seu tríplice déficit fiscal, comercial e de contas correntes, estariam com sua moeda fortemente sobrevalorizada. Para aumentar a confusão, os países de moeda sobrevalorizada sofrem fuga de capitais, o que não ocorre no caso americano, grande magneto para os investidores. Graças aos altos juros, mesmo o Brasil atrai capitais, apesar do real sobrevalorizado.
Com a globalização dos mercados financeiros, que hoje giram mais de US$ 1,3 trilhão por dia, os diferenciais de juros e as percepções de risco dos investidores se tornaram muito mais importantes para a determinação do câmbio que os fluxos comerciais.
Há também menos certeza quanto ao impacto das desvalorizações cambiais. Anteriormente julgava-se inevitável, a curto prazo, um repique inflacionário (e foi essa a experiência do Brasil ao longo de décadas). Mas o dólar na última década experimentou dramática desvalorização em relação ao ien e ao marco alemão, sem impacto inflacionário apreciável. O mesmo aconteceu recentemente com a Inglaterra e a Itália, que desvalorizaram suas moedas, abandonando o sistema monetário europeu, conseguindo recuperar crescimento sem agravamento da inflação. A explicação para essa insuspeitada flexibilidade é tríplice: a abertura comercial e a globalização financeira aumentaram o grau de competição; a revolução tecnológica permitiu saltos de produtividade; e há maior passividade nas reivindicações trabalhistas, em vista do receio do desemprego.
Se existe dificuldade no diagnóstico da sobrevalorização, a dificuldade é ainda maior quanto à terapêutica.
Que fazer no caso do real? Houve uma sobrevalorização no início do plano, quando o dólar caiu para R$ 0,84. Seria possível, porém, não fácil, evitar esse "overshoot". Não dispúnhamos de um superávit fiscal, que permitisse a absorção de dólares sem impacto sobre o mercado.
O modelo chileno de quarentena para a repatriação de capitais é pouco atraente num país com poucas reservas e sequioso de abertura internacional. Aplicou-se o IOF como desincentivo ao ingresso de capitais, mas em escala modesta, pela dificuldade de se distinguir entre fluxos especulativos e capital produtivo. Haveria a possibilidade de se abolir o monopólio de câmbio, tornando-se conversível a moeda, com permissão de depósitos e remessa em moeda estrangeira. Mas isso parecia assustador, à luz de nossa tradição dirigista. Falar depois dos fatos é fácil. Mas na hora do fogo quente era preciso evitar uma recaída inflacionária, que seria perigosíssima, e a equipe econômica preferiu errar pelo lado da segurança.
Nada disso diminui a necessidade de ativação das exportações, que são a forma mais produtiva de gerar empregos. A questão é que a desvalorização cambial para ativá-las é uma espada de dois gumes: aumenta a receita dos exportadores, mas também encarece os insumos e equipamentos importados.
No passado, usamos sucessivas desvalorizações para acomodar ineficiências e baixa produtividade, num círculo vicioso. O que parece necessário é uma divisão de tarefas. A correção da sobrevalorização cambial do início do plano deve ficar por conta de medidas extra-cambiais: redução de custos portuários, desburocratização, financiamento privilegiado às exportações, destributação de produtos exportados e melhorias da infra-estrutura de transportes, energia e telecomunicações (acelerando-se, por exemplo, as privatizações). A função da política cambial seria evitar novos desajustes, flexibilizando-se a taxa de câmbio segundo a evolução dos preços por atacado, mais relevantes para o comércio internacional que o IPC.
Parece ser esse o "rationale" subjacente à política de Gustavo Franco no Banco Central.
Uma clara idéia de divisão de tarefas é necessária também em outros setores. Da mesma forma que o problema cambial não comporta soluções meramente cambiais, o problema fiscal não é solúvel por métodos fiscais. Esses têm de ser complementados por uma reforma patrimonial, isto é, pela privatização de estatais e pela concessão de serviços.
A função da tríade de reformas -administrativa, fiscal e previdenciária- é conter daqui por diante o fluxo de endividamento. É a privatização que permitirá reduzir o estoque da dívida interna e externa, aliviando a carga de juros e dando fôlego ao setor privado. O exemplo do México é esclarecedor. Por meio de uma razoável reforma fiscal, logrou reduzir a proporções modestas o fluxo do endividamento.
Se privatizasse os seus megativos da Pemex e do sistema de eletricidade, a fim de desbastar o "estoque" da dívida, teria provavelmente escapado da grave crise de 1994. Hoje temos no Brasil uma crescente percepção, ante o encalhe das reformas no Congresso, num ano eleitoral, que mais valeria a pena termos concentrado esforços em regulamentar a flexibilização dos monopólios estatais. A privatização da eletricidade, telefonia e petróleo teriam resultados mais rápidos, em termos de eficiência econômica, que a tríade de reformas do Estado. Mas isso é sabedoria retrospectiva, que consola, porém não redime.

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