São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Os extremos da tragédia

MARCELO LEITE

Como leitor, a segunda fotografia à direita não me sai da cabeça. Como ombudsman, a primeira é que se torna difícil de esquecer. Este par de imagens publicadas na Primeira Página, com apenas 24 horas de intervalo entre elas, é um retrato fiel dos extremos de qualidade que o jornalisno da Folha pode alcançar.
O retrato do bebê Bruno realizado pelo fotógrafo Eduardo Knapp, com o pai Reginaldo Pereira da Silva, é perfeita (nos limites da perfeição que a escala humana permite). Sem a histeria nem o sangue de tantas outras imagens daqueles dias terríveis, pegajosos, ela vitrifica uma dor silenciosa e perplexa. É fotojornalismo em estado de excelência.
Outro grande mérito seu foi redimir o constrangimento do dia anterior. Quando todos os leitores aguardavam drama e detalhes, a Folha lhes serviu ironia. Uma ironia canhestra, fora de hora, que pôs em evidência não a agonia, a destruição ou o salvamento, mas uma placa: "Prezado Cliente - O objetivo de nossa tarifa de segurança é dar mais conforto e tranquilidade aos nossos usuários".
Melhor dizendo, a edição dessa imagem evidencia a própria intenção de registrá-la e publicá-la, não o que aparece na sua superfície e a legenda pseudo-ingenuamente relata ("Soldado do Exército passa por placa..."). É o fotógrafo e é o editor que se vê na foto, não o soldado, mero pretexto para a "sacada" do jornalista. Sem este, como todos deveriam saber, não há notícias...
Mau gosto
Vão dizer que é formalismo ou detalhismo, que foi um deslize sem maior importância, que estou procurando pêlo em casca de ovo. Antes fosse. Não, é o demônio de toda uma cultura jornalística que espreita nesses detalhes, quando eles são projetados artificiosamente para o centro das atenções.
Qualquer pessoa vê que a placa não tem nada a ver com a explosão, muito menos o estacionamento. Não é a placa que está na foto, mas a foto que está na placa. Por um único e fútil motivo: a palavra "segurança". Para quem duvida de que se trata de um padrão que pipoca aqui e ali na Folha, continuamente, cito dois títulos da mesma cobertura que se destacaram mais pelo próprio mau gosto do que pela notícia que deveriam sintetizar, ambos de quinta-feira: "Curioso aumenta 'quórum' em cemitério"; "Noite teve pizza e desespero".
Não dá para engolir esse "quórum", muito menos a pizza com desespero. Ficaria mais fácil se a Folha tivesse apresentado paralelamente um bom desempenho informativo. Não foi o caso.
Se o jornal se permite ser espirituoso diante de uma tragédia como a de Osasco, só se pode concluir que piadinhas sobre as hemorróidas de Antonio Kandir são mesmo pouca porcaria.
Hemorróidas
Ao ombudsman não compete criticar a opinião de colunistas. A matéria-prima de meu trabalho é o noticiário, o conteúdo informativo do jornal. Se este fugir dos padrões que a própria Folha se impôs -ser pluralista, crítica e apartidária-, chio mesmo. Não é problema do ombudsman, assim, se um colunista do jornal é contra ou a favor do ministro Kandir. Mas repare no que a Folha publicou na edição da última quarta-feira, à pág. 3-2, sob o título fogoso de "Pimenta no dos outros":
"O ministro Kandir teve problema de hemorróidas? Sinto muito por ele, mas já era hora de alguém no governo experimentar a mesma sensação que o pagador de impostos está acostumado a sentir".
De novo, esclareço que não estou a fim de abrir polêmica com este ou aquele colunista. Sai todo tipo de barbaridades nas colunas da Folha e sou o primeiro a defendê-las diante dos leitores que ligam, irritados (melhor dizendo, o primeiro a defender a liberdade de expressão dos que as escrevem).
Isso não impede, porém, que questione o próprio jornal. Se a fronteira entre bom gosto e mau gosto é difícil de traçar de antemão, torna-se fácil reconhecer quando foi ultrapassada. E não é verdade que não deva existir. Até para o relativismo tem de haver um limite, sem o qual se resvala para o cinismo.

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