São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Esconderijos da aparência

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Nada nele era aparente. Não mostrava nada", diz o narrador, com o amante agonizando nos braços. É quase o contrário do que poderia ser dito sobre o novo romance de Bernardo Carvalho, em que tudo se expõe, tudo é aparência, mas nada também se revela, exceto em momentos privilegiados, epifanias que explodem ao longo da narrativa. Em seu terceiro livro, depois do bem acolhido "Aberração" (contos), de 1993, e do romance "Onze", de 1995, Bernardo vem nos propor riscos ainda maiores, nessa ficção disposta, praticamente contra si mesma, a testemunhar as aberrações absolutas do amor e da morte.
Nada mais difícil para um autor tão consciente das possibilidades e impossibilidades do seu meio. Sua desconfiança traduz-se numa linguagem quase sem "pathos", numa profusão de histórias narradas em registro neutro. Mas essa neutralidade é suspeita para um autor que, apesar de tudo, está sempre do lado da experiência. Sua condição, nada invejável, mas que ele compartilha com alguns dos melhores escritores da atualidade, é precisamente a de reconhecer a natureza do afeto e do sofrimento, sem que a empatia descambe em identificação. O resultado é um romance duplo, em que melodrama e testemunho vão se mascarando e se revelando um ao outro.
A duplicidade, aliás, é a alma fugidia desta sequência de histórias dentro de histórias, em que autor e narrador se confundem com homônimos e narradores de narradores; em que as vozes dividem-se entre países e continentes; e em que a vontade de "não mais ser o que eu era" ressoa do início ao fim. E a duplicidade -com ecos demoníacos de Shakespeare e Poe- assume aqui também caráter de gênero, neste romance assumidamente homossexual. Cabe apontar, quanto a isto, a atualidade de um contexto internacional mais amplo, no qual se enquadram escritores como Aldo Busi, Reinaldo Arenas, Alan Hollinghurst e Edmund White, e à luz do qual um romance desses será forçosamente lido. Bernardo tem ambições menos programáticas que a de outros autores brasileiros, como Alberto Guzik e Jean-Claude Bernardet; tem também ambições mais altas, nem sempre ao alcance do livro.
Fica difícil recontar o xadrez refinado da forma sem estragar as surpresas de quem não leu. Uma simples lista será suficiente para sugerir os seus cenários. Há o caso da operação de tumor cerebral da mãe -homenageada traiçoeiramente na dedicatória (verdadeira ou falsa?), como fonte sigilosa da história que não se deveria contar. Há o caso da testemunha acidental, que viu uma mulher sair, com uma criança no colo, das águas da baía, no Rio, depois de um desastre de avião. Há o caso dos pintores cariocas da virada do século, que pintavam uns aos outros como "modelos vivos", depois de mortos. Há o estranho caso do emissário do Museu Metropolitan, que veio tratar desses quadros no Brasil e o caso ainda mais estranho, retomado ao longo dos anos, desse emissário com o narrador. Há o caso do executivo americano, sequestrado durante uma festa no Rio em 1969, e da sua mulher, que ficou. Há o caso do "repatriamento sanitário" do psicólogo louco, encontrado em Los Angeles, Chile (a Paris, Texas do livro). Há o caso do narrador que contou todos esses casos e que domina a segunda parte, supostamente verdadeira, e o caso de como esses casos se ligam, admiravelmente dobrados e redobrados em si.
A habilidade narrativa pode ser o maior trunfo do autor, mas não é sua maior cartada. Todo o seu esforço é o de não se deixar vencer pelas histórias. O excesso mesmo desses casos, multiplicados em episódios parentéticos, sugere que o que interessa está noutro lugar -no inatingível reino que as histórias parecem ocultar. "A consciência é uma armadilha", diz o psicólogo louco, autor de uma série de diagnósticos "como pequenas fábulas". Em seus momentos mais frágeis é o próprio romance que, inversamente, ameaça se transformar numa série de fábulas como pequenos diagnósticos.
Que o controle das aparências seja calculado para a explosão das paixões -como se a vida toda fosse uma placa sísmica, perpetuamente ameaçada por tremores e erupções- é algo que funciona melhor como instrumento de ritmo do que como lição. E mesmo esse ritmo tende a se tornar insistente demais, uma alegoria do recalcado. O livro, porém, é mais forte que as suas falências, e essas imagens recuperadas acabam descrevendo uma outra figura, no limite apenas da compreensão, lá onde o que se sabe ecoa incompreensivelmente. "Os poetas estavam lá antes de nós", escreveu Freud; e Bernardo Carvalho, à sua maneira, chegou antes de nós no terreno do trauma e do testemunho, questões candentes da literatura e da teoria literária contemporânea -mas não (até agora) entre nós.
Neste domínio, não é mais possível afirmar, como Jean-Claude Bernardet em "A Doença, uma Experiência", que a ironia é "um valor acima de qualquer outro"; e Bernardo é mesmo um escritor sobriamente feroz, indisponível para as alegrias. As inúmeras coincidências que vão dirigindo a narrativa têm menos de humor do que de paranóia, e a tensão da voz só relaxa, artificiosamente, em quase piadas sobre o poder antecipatório da literatura, ou na presença fugaz dos coadjuvantes Henry Kissinger e Emma Thompson, ou em algum registro da comédia (mais geralmente o transe, ou apuro) sexual.
A ferocidade tem sua dose de sentimentalismo, por certo, mas o melodrama, aqui, foi roubado do "melos", que só ressoa inaudivelmente, em tudo o que não foi dito. E nos dois momentos de clímax, no final da primeira parte e em seu espelho parcial, no fim, quando o autor, virtuosisticamente chegado até lá, abdica então do controle e deixa que a literatura -ou que outro nome se dá para o que não é nem bebedeira, nem sonambulismo- tenha a palavra, e seja capaz, afinal, de dizer o que importa.
Nestes momentos, Bernardo Carvalho transcende os limites que ele mesmo se criou, nessas narrativas tão ensimesmadas e obsessivas. Daqui para a frente, como diz um narrador, tudo é verdade, e o livro completa um retrato do morto que fica fora daquelas pinturas cariocas. É um morto que o livro traz de volta à vida: o último duplo, testemunha e objeto, sobre cujo rosto o romance vem desenhar, com a força de uma compulsão, as feições amorosas e aberratórias de cada leitor.

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