São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996 |
Texto Anterior |
Índice
Médicos ensinam a matar bebês
GILBERTO DIMENSTEIN Ao coletar informações sobre partos nos hospitais brasileiros, o médico David Capistrano chegou a uma horripilante conclusão: em todo o país, médicos provocam a morte de bebês.Condecorado pela Unicef por seus projetos sociais e apontado como referência pela Organização Mundial de Saúde, o prefeito de Santos, David Capistrano, aponta a irresponsabilidade e o desleixo dos médicos como uma das causas da mortalidade infantil. Cruzando dados, ele percebeu que, nos feriados e finais de semana, cai o número de partos de mulheres pobres. "Essa queda estatística é uma valiosa pista e mostra a cadeia de irresponsabilidade." Consequência da indústria da cesariana, o parto seria marcado com antecedência, de acordo com a conveniência do médico -a cirurgia dá menos trabalho, embora mais arriscada. "Bebês de mulheres pobres têm nascido antes do tempo. Por não estarem completamente formados ficam mais frágeis a qualquer infecção, provocando a morte", sustenta Capistrano. Ele, semana passada, esteve em Istambul, onde deu palestra a convite da Organização Mundial de Saúde. Não é necessário ser detetive ou professor de obstetrícia para descobrir escândalo. Em alguns municípios de São Paulo, apenas 30% dos partos são naturais. Compare: no Japão, 93%; na Europa, 85%. Natural que, nesse contexto, exploda um shopping center em Osasco, apesar do vazamento de gás constatado há um mês -omissão, irresponsabilidade e impunidade estão arraigados na cultura brasileira. * Bobagem (vou repetir, bobagem) culpar apenas o poder público. Somos uma nação de relapsos: desconfiamos, com razão, da incompetência, do desleixo e da corrupção do Estado. Mas, ao mesmo tempo, ficamos de braços cruzados esperando a solução de cima. Em geral, não somos críticos ativos, somos chorões passivos. Há tempos se denuncia a indústria da cesariana, mas não conseguimos prender ou processar médicos que arriscam desnecessariamente a vida de mulheres e crianças. * Temos surtos passageiros de ódio de irritação diante das tragédias que contaminam o sangue em Caruaru, matam velhos no Rio ou assassinam trabalhadores do campo no Pará ou Maranhão. Cada tragédia faz esquecer uma tragédia passada, e não se vê um movimento com raízes profundas contra a impunidade e a agilidade da Justiça. * Odeia-se, com razão, a bandalheira dos parlamentares e a corrupção oficial. É costume, entretanto, tentar subornar o guarda que vai multar porque flagrou o motorista em alta velocidade. Ou o fiscal que cobra por fora. * Os problemas da saúde, educação, segurança são dos "outros". Mas ninguém sabe quem são os "outros". Usa-se, assim, o Estado para justificar o misto de preguiça, falta de cidadania e descaso. Nesse embuste, preguiça ganha um ar de civismo. Pais não participam das decisões das escolas dos filhos porque, afinal, pagam para os "outros" decidirem. Vaza o gás? Problema "deles". A segurança do shopping não tomou providência? Problema "deles". * Dá para esperar muita coisa do Brasil, quando os professores universitários imaginam um direito se aposentar jovens, depois de todo o investimento que receberam em sua formação? Se a universidade, que deveria ser a luz do país, dá esse exemplo, por que o Congresso deveria ser melhor? * O Brasil exibe bons exemplos, apesar dessa preguiça travestida de civismo. Foram selecionados pela ONU, durante encontro em Istambul, 400 projetos bem-sucedidos no planeta. O Brasil está em primeiro lugar, ostentando 10% dos projetos. Em todos eles, uma dica: o sucesso ocorreu por causa da união entre o poder público e a comunidade. * Destaque em Istambul, Porto Alegre dá boa lição e dissemina creches da prefeitura em parceria com a comunidade. Preço por criança: R$ 30,00 por mês. * Reconhecimento: uma pediatra dá um ótimo exemplo. Chama-se Zilda Arns que, nesse semestre, graças ao trabalho da Pastoral da Criança, a qual preside, alcançou níveis surpreendentemente baixos de mortalidade infantil nos bolsões de pobreza. Custo por criança: R$ 0,50. * Quando o Brasil aparece no "The New York Times" é porque, em geral, aconteceu algum desastre. Exceção. Cheguei sexta-feira da Turquia e li uma agradável notícia. Com imenso destaque, reportagem falava sobre o médico Randas Batista. Segundo o jornal, ele inventou uma técnica que pode revolucionar a cirurgia do coração. Isso apesar de trabalhar na zona rural do Paraná e com instrumental precário. * PS - O problema é que o Brasil é um conjunto de ilhas de excelência cercada de um mar de mediocridade. Os brasileiros não lidam bem com o sucesso. Em vez de ser fonte de inspiração, transforma-se em ressentimento. Suspeito que se prefere sentir pena da desgraça do que admiração pelo sucesso alheio. E-mail GDimen@aol.com. Fax (001-212) 873-1045 Texto Anterior: Ella já nasceu pronta Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |