São Paulo, domingo, 23 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crises do capital

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "O Longo Século 20 - Dinheiro, Poder e as Origens de Nosso Tempo", Giovanni Arrighi apresenta uma nova interpretação da história, a partir de idéias de Fernand Braudel combinadas com teses de Schumpeter, Marx e Pirenne. O livro se apresenta despretensiosamente como aplicação da "idéia braudeliana das expansões financeiras como fases finais dos grandes desenvolvimentos capitalistas" à história dos últimos seis séculos aproximadamente, mas na realidade reescreve a dita história como sucessão de "ciclos sistêmicos de acumulação", definidos a partir do inter-relacionamento mutável entre poder estatal, a alta finança e a economia produtiva.
O ponto de partida da análise é que o capitalismo forma um sistema mundial, que passa por ciclos marcados pela hegemonia de diferentes Estados. Entre 1340 e 1630, este papel foi desempenhado pelos genoveses, entre 1560 e 1780 pelos holandeses, entre 1740 e 1930 pelos ingleses e desde 1870 pelos EUA.
Estes períodos se superpõem parcialmente porque entre um ciclo e o seguinte há um intervalo, que começa com uma crise "sinalizadora" de que o regime de acumulação está para se esgotar e finda com uma crise "terminal". Assim, por exemplo, a crise sinalizadora de que a hegemonia genovesa se aproxima do fim ocorre em 1560, quando os holandeses começam a disputá-la, mas esta disputa só acaba em 1630. Estas duas datas delimitam um período de transição, que seria caracterizado pela expansão financeira, conforme sugeria Braudel.
O mais interessante, na obra de Arrighi, é a causalidade desta sequência de ciclos sistêmicos. Quando um novo Estado se torna hegemônico na economia mundial capitalista, a produção e o comércio entram em expansão porque a nova articulação do poder político com a alta finança supera os entraves que haviam interrompido o crescimento no ciclo precedente. A cada ciclo sistêmico, o relacionamento entre Estado e poder financeiro é reorganizado de modo mais poderoso e complexo para superar os entraves que a hegemonia precedente não fora capaz de eliminar.
À medida que produção e intercâmbio mercantil crescem, os lucros são reinvestidos e novos competidores entram no mercado, até que o custo dos insumos e da mão-de-obra começa a aumentar e o preço de venda passa a cair, comprimindo a margem de lucro. Para Arrighi, a tendência à baixa da taxa de lucro tem sido fatal, e ela "deveu-se (...) a uma superabundância de capital, como nas 'crises de superacumulação de Marx'±" (p. 232).
Assim dito, o esquema parece muito simples, mas na realidade a "fase B de lucros decrescentes e expansão mais lenta" é o resultado de um complexo entrelaçamento de fatores econômicos e políticos. Vejamos um exemplo. "O mais grave problema subjacente enfrentado pelo regime britânico ainda era o da intensidade da competição intercapitalista. Como já foi observado, a alta dos preços de meados da década de 1890 havia curado a doença da burguesia européia, revertendo a drástica redução dos lucros do quarto de século anterior.
Com o tempo, entretanto, a cura revelou-se pior que a doença. É que a alta se baseara primordialmente numa nova escalada da corrida armamentista entre as grandes potências da Europa. Como tal, refletira, não uma superação da intensa competição intercapitalista que marcara a Grande Depressão de 1873-96, porém uma mudança do seu " 'locus' primário da esfera das relações interempresariais para a das relações interestatais" (p. 277).
A crise que assinala o fim do ciclo britânico está longe de ser puramente econômica e vai desaguar na Primeira Guerra Mundial. A combinação de contradições econômicas e conflitos políticos torna a hipótese de crise sistêmica bastante convincente, mas supera a teorização do próprio autor, que na hora de generalizar se limita a examinar causas econômicas.
Os períodos relativamente longos de transição, que duram vários decênios, se caracterizam pela expansão financeira porque a multiplicação de conflitos armados obriga os Estados a ampliar o seu endividamento, o que suscita oportunidades de aplicação financeira a juros convidativos, enquanto a atividade econômica apresenta retornos decrescentes.
O crescente entravamento da economia intensifica as contradições entre os Estados e os lança à luta pela hegemonia do sistema. Quando o Estado portador das soluções organizacionais à crise econômica dá início ao novo ciclo mediante a expansão da produção e do intercâmbio, o grupo ainda hegemônico passa a financiar a nova atividade econômica, o que frequentemente confere grande esplendor material ao seu momento derradeiro de dominação. Entre 1740 e 1780, os holandeses financiaram o comércio e a manufatura britânicas, e entre 1870 e 1930 o capital britânico fez o mesmo nos EUA.
Pela teoria de Arrighi, o sistema capitalista mundial está mergulhado em crise desde 1970, e o presente auge financeiro reflete a intensidade e extensão da crise. O lento crescimento da produção material desvia capitais crescentes para a especulação financeira e ao mesmo tempo amplia o gasto social dos Estados, em função do crescimento do desemprego e da exclusão social. Até certo ponto, o panorama dos últimos 25 anos se encaixa no esquema teórico de Arrighi. Mas o próprio autor adverte que a sua teoria não é suficiente para permitir previsões sobre o desenlace da crise. Ela não abrange o relacionamento dos grupos hegemônicos com as outras classes sociais nem o do centro com a periferia do sistema.
Isto significa que a presente crise sistêmica não precisa dar lugar a um novo ciclo de acumulação. Em vez disso, o próprio capitalismo pode ser substituído por outro sistema. Mas, para discutir esta hipótese, a luta de classes dentro dos diversos países assim como as disputas entre as nações dominantes e periféricas teriam que ser analisadas. Arrighi reconhece francamente esta limitação do seu trabalho, que nem por isso deixa de ser instigante, sobretudo em relação à atual quadra histórica.
Com muita prudência, o autor considera que "se o capitalismo sobreviver à atual crise" e portanto passar a um novo ciclo de acumulação, então o Japão isoladamente ou em aliança com outros países do leste asiático parece ser um candidato provável ao papel de Estado hegemônico.
Outra alternativa seria a hegemonia passar a ser exercida por um governo mundial, o que é sinalizado pela crescente utilização da ONU e de agências a ela filiadas, como o Fundo Monetário Internacional, pela potência hegemônica e pela alta finança para dirimir conflitos e supervisionar a solução de crises.
O trabalho de Giovanni Arrighi merece ser estudado e debatido, pela luz que lança sobre as recentes reviravoltas históricas, que apanharam todos os esquemas interpretativos de surpresa. Ele demonstra que as ciências humanas não podem deixar de se nutrir na história, a qual é mais do que nunca um campo fertilíssimo para novas investigações.

Texto Anterior: Um arquiteto do liberalismo
Próximo Texto: A viabilidade atual do marxismo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.