São Paulo, domingo, 23 de junho de 1996
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Novas aventuras para o romance moderno

JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num artigo recente para o jornal "Le Monde", Milan Kundera denuncia o "provincialismo internacionalizado" dos estudos universitários, que examinam a literatura exclusivamente em seu aspecto nacional, e pergunta com razão: "Como é possível entender a originalidade de Broch ou Proust sem tomar como uma referência a problemática supranacional do romance moderno?".
Ocorre que a tradição do romance moderno está sendo posta em questão pelos que crêem que o próprio mundo moderno está chegando a seu término.
Nesta era do pós-Guerra Fria, é errôneo falar em fim da história, mas estamos indubitavelmente confrontados com uma crise das idéias utópicas, da revolução e de conceitos de vanguarda. Umberto Eco chegou até a comparar estes novos tempos com a Idade Média. Já não há grandes projetos alternativos de sociedade. As idéias de progresso e de desenvolvimento têm sido criticadas e revistas. Não dizemos nada positivamente, desconstruímos significados.
A fragmentação da narrativa não é uma nova invenção e não pode ser generalizada para o conjunto da ficção contemporânea. De fato, nada ainda está sendo percebido como tendo a possibilidade de definir o conjunto da ficção contemporânea. A multiplicidade tem sido a única característica unificadora da presente cena literária. Mas é inegável que as grandes perspectivas do passado, os temas épicos e os romances de formação têm cedido espaço para uma percepção parcial da realidade, para os temas étnicos ou de gênero, para assuntos específicos da vida cotidiana e para o fragmento.
Esta não é, por sinal, uma característica apenas da literatura. De fato, o fim dos grandes relatos foi positivamente primeiro declarado, de maneira explícita, por um grupo de filósofos. Muitos historiadores têm também abandonado o estudo dos grandes percursos abrangentes da história, para investigar detalhes da vida cotidiana e privada do homem comum. Estes enfoques aparentemente mais estreitos não estão em contradição com o corrente processo de globalização. Este, de fato, requer identidades locais como substância ou mercadoria do intercâmbio e da comunicação mundiais.
Desta perspectiva, a questão da relação entre o local e o universal adquire novas características. Muitos perguntariam, por exemplo, se existe ou está em processo de forjar-se uma literatura das Américas ou mesmo uma literatura mundial. De um lado, com as comunicações facilitadas, temas tais como as migrações internacionais e outros relacionados com a internacionalização podem atrair a atenção dos escritores. De outro lado, a fragmentação da cultura e a falta de ideologias que dêem sentido às transformações mundiais abrem novos horizontes para uma literatura preocupada com realidades locais e parciais.
Não estamos condenados a opor uma pós-modernidade nova, irracional e relativista a uma modernidade universalizante e racional. Os conceitos universais não são privilégio europeu e a razão, como diz Pierre Bourdieu, tem suas histórias locais. O universalismo pode ser uma invenção européia ou eurocêntrica, mas a universalidade não tem um centro. Os valores, as idéias e os costumes migram, farão isso mais facilmente com a intensificação das comunicações, e têm sempre o potencial de universalizar-se.
Para além das idéias de que as culturas são igualmente valiosas ou de que são hierarquizáveis, deve-se permitir a mudança autônoma e os direitos de expressão e de mútua crítica. Por outro lado, não precisamos de uma defesa contra a globalização, mas de um verdadeiro cosmopolitismo que acabe com a cegueira e o preconceito que podem ser causados paradoxalmente pela própria ênfase na cultura ocidental. Não há por que temer que um novo barbarismo venha a invadir o território da civilização, se a civilização puder ser criada e recriada por meio do diálogo entre culturas.
Quer desejemos defini-lo como uma nova expressão da tradição moderna ou como uma ruptura com a tradição, testemunhamos um novo movimento da liberdade. A literatura contribui para a expansão das fronteiras do possível, representando o futuro em novas e múltiplas formas, redescobrindo o passado. No seu impulso criativo, ela não é refém nem sequer da vanguarda e do novo, já que a busca do novo pode tornar-se velha e o vanguardismo pode ser apenas a ilusão dos que, ao repetir o passado, crêem estar à frente de seu tempo.
Ao abandonarmos a vã tentativa de controlar a história -ou o relato-, esta humildade não significa menos, porém mais. A fragmentação cultural, a análise do pequeno objeto, das vias alternativas têm liberado enfoques novos e levado a descobertas.
Grandes sínteses podem até mesmo ressurgir, como resultado deste processo. Não sabemos que forma tornariam. Quiçá venham a ser compostas pelas descobertas que estamos fazendo e pelo desenho elaborado, talvez por uns poucos escritores iluminados, a partir da junção de tantos pedaços.
Não há por que temer que, com a nova liberdade que estamos experimentando, a literatura fique desorientada, deslocada ou ultrapassada. Ela estará sempre à altura de seu tempo, se for inventiva. De fato, devíamos dizer, como Italo Calvino, que "somente se os poetas e escritores se atribuírem tarefas que ninguém mais ousa imaginar continuará a literatura a ter uma função".

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