São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vale homem com homem e mulher com mulher

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Na última campanha, andava de bicicleta pela cidade, tocando música. Uma delas, de Tim Maia, tinha versos que diziam: Vale tudo, vale o que vier/Só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher.
Meses mais tarde, Tim Maia apareceu no Congresso e confidenciou que os versos eram mesmo um pouco limitados. Não sabia, naquele momento, que na mesma sala por onde passou, um ano depois, seria discutida uma lei antagônica à sua canção: vale homem com homem e mulher com mulher.
Parte da mídia chama isso de casamento de homossexuais. De um ponto de vista civil, é casamento mesmo. Mas as características religiosas e ritualescas que se atribui ao casamento não estão presentes.
Os debates começaram no dia de Santo Antônio e isso foi destacado também, criando uma tensão especial, como se a escolha do dia fosse uma tentativa de provocar os católicos. Mas não era.
Quando se discutia o divórcio, a primeira grande argumentação contrária veio da própria Igreja. O casamento é indissolúvel, diziam seus teóricos, que, desdobrando os ensinamentos de sua doutrina, mostravam como essa evidência nascia de forma cristalina nos textos sagrados.
Agora, na união civil de homossexuais, um novo argumento vem à tona: é contra a natureza. Mesmo sem citar outras fontes além da "Bíblia", os religiosos acabam repetindo as teses de São Tomás de Aquino. Nelas, a naturalidade do sexo se baseia na procriação como objetivo.
Se alguém fosse se orientar apenas pela Igreja, votaria contra. Mas acontece que existem várias igrejas, vários livros sagrados. E gente que nem acredita em Deus. O que dizer para elas, exceto que o Estado é laico e não vai forçar ninguém a seguir os princípios religiosos?
No momento em que o argumento do natural perde sua força, surge outro mais sutil. Aliás, é impressionante como debate brasileiro repete o norte-americano. O livro de Andrew Sullivan, "Praticamente Normal, uma Discussão sobre o Homossexualismo", editora Companhia das Letras, é um roteiro antecipado do que se discute agora no Brasil.
O novo argumento, descrito por ele como o argumento conservador, não necessariamente religioso, tolera a homossexualidade vivida discretamente. Mas se recusa a reconhecer a união legal.
A expectativa de que os homossexuais sejam livres privadamente e ocultos em público acabou se materializando na política militar norte-americana. Soldados e oficiais podem ser gays, desde que não revelem. Não pergunte, não conte, passou a ser o slogan dessa hipocrisia, intelectualmente insustentável.
No caso da união civil, seguindo até as últimas tendências da Igreja, leia-se Joseph Ratzinger, os conservadores se colocam contra o preconceito direto. Mas afirmam que reconhecer legalmente um casal pode estimular o homossexualismo. Um deputado de São Paulo usa o verbo glorificar.
Já não estamos mais diante de algo antinatural, nem uma doença que se possa combater em nível particular. Mas sim de um tipo de proposta que precisa ser anulada com uma perspectiva pedagógica.
Por meio da recusa de reconhecer a união civil, lança-se a mensagem de que o homossexualismo é tolerado, mas, ao mesmo tempo, desencorajado.
Sullivan rebate tranquilamente essa argumentação, mostrando que os homossexuais são sempre uma minoria e não têm condições de ameaçar a estabilidade da maioria hetero.
Além disso, colocando-se no lugar dos próprios conservadores, mostra que a existência de uma união legal pode ser um norte para os jovens homossexuais, uma espécie de futuro com que possam sonhar, contribuindo dessa forma para a ordem e tranquilidade geral.
Aliás, é interessante notar como conservadores e radicais gays se encontram nesse ponto. Os primeiros querendo evitar a união, os radicais desprezando-a por achá-la uma caretice. De qualquer forma, uma espécie de camisa de força legal para relações amorosas que deveriam ser livres e espontâneas.
O debate no Brasil está apenas começando, mas a sua simples existência pode contribuir para a redução da homofobia nacional, um complexo edifício feito de ironias, piadas, discretos preconceitos, mas que acaba abrigando algumas sinistras zonas de sombra, como, por exemplo, a série de assassinatos de homossexuais no Brasil.
Alguns conhecidos morreram assim e, como repórter policial, tive a oportunidade de cobrir outros casos. Sempre fiquei chocado com o número de golpes de faca que sofriam: 50, às vezes 60. E sempre me perguntei: se bastam alguns golpes para matar, o que é que o assassino estava matando?
Minha hipótese é que os assassinos, na maioria das vezes simples garotos de programa, estavam tentando matar o seu próprio homossexualismo.
Dificilmente o Brasil avançará para o radicalismo liberal que tenta impedir comportamentos individuais preconceituosos. Mas, enquanto Estado neutro e laico, não tem mais argumentos para negar a igualdade de todos perante a lei.
Mencionando os EUA, Sullivan acha que a agenda da política homossexual do fim de século será marcada pela união civil e o direito de entrada nas Forças Armadas.
Já estou apoiando entusiasticamente a idéia da união civil. Se surgir a de inclusão nas forças militares, por uma coerência democrática também a defenderei. Isso não significa que não tenha contradições pessoais com as duas propostas.
Vivo há 14 anos com uma pessoa e jamais nos casamos legalmente, tendo sido salvos pela nova Lei do Concubinato. Além disso, sou autor de uma emenda constitucional que prevê o serviço militar facultativo em tempo de paz.
Em outras palavras, estou concentrado na luta para que as pessoas possam rejeitar o serviço militar.
O que fazer? Resta apenas repetir aquela última frase de "Quanto Mais Quente Melhor": Nobody is perfect.

Texto Anterior: CLIPE
Próximo Texto: Minissérie exibe cinco últimos dias de Getúlio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.