São Paulo, sábado, 29 de junho de 1996
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Sequestradas em Minas as obras de Aleijadinho

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Em abril do ano passado o Museu Nacional de Belas Artes do Rio expôs, com um êxito que se diria reservado a eventos televisivos e cinematográficos, esculturas de Auguste Rodin. Agora, o público está indo ao MNBA para ver as luminosas paisagens pré-impressionistas pintadas por Eugène- Louis Boudin.
Nada de mais justo, assim, que tenha surgido, desde a exposição Rodin, a idéia de o Brasil retribuir o gesto dos franceses, fazendo em Paris uma exposição das obras do grande mestre do barroco brasileiro, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Em primeiro lugar, não existe em nossas artes plásticas ninguém mais intrinsecamente original e representativo.
Além disso, nada seria mais fácil do que deslocar para viagem as obras-primas de cedro que o Aleijadinho nos deixou nas capelas dos Passos da Cruz. Os profetas do adro da igreja são de pedra-sabão, fixos em sua dança eterna do Antigo Testamento.
Mas a história do Novo Testamento, a de Jesus, Maria e Madalena, são móveis, leves, prontas a viajar. Como se o Aleijadinho imobilizasse tudo que aconteceu antes de Cristo, deixando em perpétuo movimento e inquietação o que veio a seguir, a era cristã, para ele eterna, inacabável.
Não conheço, pessoalmente, nada mais perturbador do que aquele conjunto do Aleijadinho em Congonhas para quem é ou já foi católico. A angústia religiosa local levou a um estado de espírito diferente o próprio "enfant terrible" de sua geração, Oswald de Andrade.
Na bela reportagem artística que nos deixou no livro "Reconquista de Congonhas" (Instituto Nacional do Livro, 1960), Lourival Gomes Machado flagrou o Oswald daquele instante em palavras exatas e comovidas:
"Aqui, no período mais ousado, mais revolucionário da vida de Oswald, perpassou um sopro de grandeza tranquila que (...) prenunciava um pouco da ansiada certeza por que lutou depois, em suas mais fundas dúvidas, da maturidade até a morte".
E cita a poesia de Oswald: "As cúpulas dos Passos/ e os cocares verdes das palmeiras/ são degraus da arte do meu país/ onde ninguém mais subiu: /Bíblia de pedra-sabão/ banhada no ouro das Minas".
O livro de Lourival (inicialmente reportagem para "O Estado de S.Paulo") é precioso, porque se ocupa da Congonhas de 1957, quando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se ocupou da restauração daqueles tesouros deixados pelo Aleijadinho e até hoje desrespeitados e rabiscados por visitantes.
Mas era sobre isso que eu ia escrever? Decididamente não. Era sobre o fato de que nada dos referidos tesouros pode viajar e deleitar estrangeiros como a nós acabam de nos deleitar Rodin e Boudin.
O prefeito de Congonhas, Gualter Monteiro, não dá passaporte a estátua nenhuma do seu município. Quem quiser conhecer o Aleijadinho que vá a Congonhas. "As peças ficam", diz o prefeito em tom final e peremptório.
A gente se coloca, de imediato, contra o prefeito. Por que exigir que vá a Minas quem quer que deseje de fato conhecer o único escultor brasileiro que mereceu um lugar no "Museu Imaginário" de André Malraux? Ou que foi o centro de um admirável estudo que fez sobre o barroco Germain Bazin?
E tem mais: vivemos temporada de intenso turismo de obras-de-arte as mais preciosas, como os quadros de Vermeer, de Degas, de Cézanne.
E tem mais ainda. A despeito dos protestos de nacionalistas de Formosa (não consigo me habituar a chamar a ilha de Taiwan) e dos meios artísticos da China continental, nada menos que quatro diferentes museus dos Estados Unidos - Nova York, Chicago, San Francisco e Washington - expõem neste momento milenares tesouros artísticos emprestados pela dita ilha de Formosa.
Trata-se de cerca de 500 peças de jade, porcelana, laca, seda, pinturas. Contra todos os "prefeitos de Congonhas" formosinos (o termo "formosino" continua no Aurélio) e todos os que protestaram na China, os tesouros artísticos viajaram e estão fazendo o maior sucesso.
Mas o nosso prefeito Gualter Monteiro não entrega os pontos. Não só se diz apoiado pelo SPHAN como declara que "as peças não saem porque, se voltarem, não voltarão como se foram. (...) Não se registrou a presença de ninguém que aqui aportasse trazendo apoio ou recursos para a restauração das peças ou preocupação com sua manutenção. Congonhas é cidade hospitaleira e coloca seu patrimônio para visitação. As peças ficam".
O que vejo nos jornais é que, animado pelo êxito das exposições francesas aqui, o secretário-geral da União Latina, Phillippe Rossillon, tenta levar o Aleijadinho a Paris.
Ouso segredar ao prefeito Gualter que a idéia acho que agradaria, e muito, a Antonio Francisco Lisboa? E será verdade que ninguém foi a Congonhas tratar do assunto?
Ou o prefeito Gualter é simplesmente um desses que desconfiam sobretudo do Brasil, distraído guardião do seu patrimônio artístico?
Pensei nisso, e nele, prefeito, ao passar outro dia pelo belo e imperial prédio (antigo hospício) que é hoje o campus, na praia Vermelha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Há, naquele nobre edifício pelo qual velava tão bem o reitor Pedro Calmon, paredes enormes que estão a pique de vir abaixo, trazendo em sua queda as estátuas que lhe adornam os telhados e se recostam contra o céu da praia Vermelha, do Pão de Açúcar.
Há dias o Museu Nacional, em São Cristóvão, apresentou festivamente ao público a múmia, de 3.000 anos de idade, que lá se encontra desde que a adquiriu d. Pedro 1º.
O museu voltou a apresentá-la para mostrar como estava de novo... seca. Tão bem guardada era ela que uma chuvarada do verão passado a ensopara d'água.
Enquanto isso, quando fala em suas estátuas, o prefeito de Congonhas parece falar em gente viva. Certo ou errado, quer defender seus santos e apóstolos "de pessoas esquecidas de que atrás das estátuas há muita história, muito apego, muito afeto".
Um prefeito teimoso mas amoroso. Parece tomar conta de suas estátuas com muito mais empenho e dedicação do que eram tratados os velhos internados na clínica Santa Genoveva ou os pobres enfermos de Caruaru.
Ele pode não ter razão. Mas acho, também, que ainda que deseje ardentemente conhecer Paris, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, continuará mantendo ternas relações com o prefeito Gualter.

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