São Paulo, domingo, 30 de junho de 1996
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Por um Estado que funcione

CLÁUDIA COSTIN

Reconstruir ou reformar um Estado não é tarefa fácil para nenhum governo, muito menos para o nosso. O Estado brasileiro ainda permanece voltado para o passado. Reconhecidamente intervencionista, orientou, nos anos 70 e 80, segmentos inteiros para a produção direta de bens e serviços, ocupando espaços próprios da iniciativa privada.
Vicioso e viciado, ainda agasalha elites e abriga corporativismos, insustentáveis num país de dezenas de milhões de miseráveis. À margem do processo decisório, encontram-se outros milhões de candidatos à cidadania. Esta, com certeza, não é uma tarefa fácil. Além disso, não se reconstrói um Estado com atos isolados.
O desafio é tanto maior porque envolve a alteração, por processo gradativo e contínuo, de práticas muito enraizadas na nossa sociedade. O desafio, porém, deve ser enfrentado. O custo de não enfrentá-lo seria conviver com horizontes de desenvolvimento econômico cada vez mais estreitos, com levas cada vez mais numerosas de excluídos do sistema, e com uma democracia de qualidade questionável, porque duvidosa. Ou seja, o custo de não se enfrentar a reforma é altíssimo.
Até meados de 1994, a vergonha do brasileiro se media pelos índices estratosféricos da inflação. Com o Plano Real, atingimos o que parecia impossível: a estabilização da moeda, requisito indispensável a qualquer reforma estatal.
Os demais requisitos, disciplina fiscal, mercado flexível de trabalho, abertura da economia, reforma tributária, ou já foram ou estão sendo estruturados. Se conhecemos hoje o déficit fiscal do país, o mesmo, contudo, não podemos dizer do déficit gerado pela falta de desempenho na administração pública.
Agora, é urgente mudar a prestação dos serviços em todas as áreas do governo. É preciso, mais do que tudo, incorporar definitivamente ao serviço público práticas inquestionáveis de eficiência e justiça social. A primeira, mediante análise de custo-benefício; a segunda, mediante comprovação da necessidade dos serviços pela população a ser atendida. Caso contrário, continuaremos, "ad infinitum", gastando muito e gastando mal.
Essa mudança, é óbvio, deve ser suficientemente ampla para abranger todas as instâncias de governo e todos os poderes da União; suficientemente sólida para congregar apoio nos vários setores sociais; mas, sobretudo, suficientemente profunda para atingir todas as prioridades de atendimento à sociedade.
Prioridades definidas em termos de metas claramente quantificáveis, de modo que a atuação do serviço público se reverta de forma inequívoca em benefício maior: para os contribuintes, que, ao arcarem com os custos dos serviços, deles verão os resultados; para a sociedade, que usufruirá de serviços cada vez mais eficientes e confiáveis; para o servidor, que finalmente vislumbrará sua missão cumprida.
É necessário lutar por uma administração do serviço público em bases gerenciais. Em cujos parâmetros esteja definido, avaliado e enfatizado o desempenho tanto do serviço público quanto dos seus servidores no trato da "res publica". Em que cada resultado esteja especificamente descrito e mensurado em termos de qualidade, quantidade e custo. Em que os contribuintes, os usuários e a sociedade saibam, clara e previamente, o que se pretende alcançar, com que finalidade e quanto estarão pagando por isso. Em que, atingidas as metas e os resultados, sejam disso informados, de modo que, periodicamente, possam eles mesmos referenciar o serviço prestado.
Nesse contexto, é fundamental valorizar o servidor público. Valorizar a profissão de servir ao público. Passar do estágio atual -de Estado auto-referenciado, que se vê com um fim em si mesmo ou, na melhor das hipóteses, como uma máquina de emprestar pessoal, de Estado paternalista, que estabelece com seus servidores uma relação de piedade, sem lhes exigir ou recompensar o desempenho-, para um Estado compromissado não só com os serviços, mas principalmente com a qualidade dos serviços que presta.
A mudança do perfil de atuação do Estado abrange a revisão de sua política de recursos humanos, que inclui sistema de avaliação de desempenho, capacitação e planos de carreira, além de outras medidas voltadas para o melhor aproveitamento dos servidores.
Numa primeira etapa, no caso do governo federal, deve-se fortalecer seu núcleo estratégico, formulador e avaliador de políticas públicas, retirando-lhe o caráter cartorial e processualístico, demandador de um sempre crescente suporte administrativo, e dotando-o dos recursos necessários para coordenar a ação do Estado sobre os problemas nacionais. Observe-se que há, hoje, no governo federal, excesso de pessoal em áreas de apoio administrativo e carência nas de formuladores de políticas públicas.
Vários Estados e municípios estão também se ajustando a esse novo contexto. Muitos já começaram a implementar políticas que possibilitarão, no médio e longo prazos, a mudança requerida no perfil de atuação do Estado brasileiro.
Essa, a tarefa maior hoje. Essa, a missão, sem a qual não haverá Estado, nem eficiente nem suficiente para justificar sua existência perante a própria sociedade.

Cláudia Maria Costin, 40, mestre em economia pela Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (SP), é secretária-executiva do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado.

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