São Paulo, quinta-feira, 4 de julho de 1996
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Pequenos assassinatos

OTAVIO FRIAS FILHO

Investigações refeitas, corpos exumados, as mais fantásticas especulações armadas em torno de todas as suspeitas imagináveis, dez dias depois tudo volta ao ponto de partida, dando aparente razão à sherlockiana polícia de Alagoas. A opinião pública desistiu da verdade, os jornalistas se entreolham: foi muito barulho para nada?
O caso pode continuar misterioso quanto ao(s) crime(s), mas é revelador sobre a imprensa, suas qualidades e defeitos. Seria útil uma tese em jornalismo que apurasse as imprecisões, os dados contraditórios ou simplesmente errados que a mídia, apesar de atribuí-los quase sempre a terceiros, identificados ou não, divulgou em dez dias.
Claro que a enorme curiosidade pública e a urgência de solapar eventual acobertamento estimularam a precipitação, ainda mais que a perícia local está sob suspeita também. A hipótese de crime político legitimou, dada a posição capital de PC Farias na história recente, a curiosidade pelos aspectos passionais; as duas versões se alimentavam.
Num caso assim, a imprensa age, mal comparando, como os bombeiros, que podem danificar tapetes e vidraças, estragar quadros etc. no afã de salvar o prédio. Em função do evidente interesse público (embora também mórbido), o "prédio" a ser salvo é a divulgação da verdade, que pode estar oculta em algum indício, algum testemunho.
Tornar tudo rapidamente público é garantia contra a própria investigação duvidosa e esperança de elucidar um passado semi-explicado. Mas quais os limites? Mostrar imagens dos mortos? Quais? Expor adolescentes? A regra de verificar cada informação com duas fontes distintas foi a primeira vítima do exército de jornalistas em Maceió.
O ambiente de competição aguda entre os meios de informação, reflexo do que ocorre na economia e na sociedade, melhorou a imprensa. É um engano supor que o jornalismo no Brasil está decadente, ele provavelmente atravessa hoje o seu apogeu. Mas a hiperconcorrência gera distorções e acentua defeitos tradicionais.
Em vez de se diversificarem em estilo e concepção, como seria o ideal, os meios se tornam cada vez mais parecidos, configurando aquele "partido da Mídia" que FHC considera a verdadeira "oposição" a seu governo. Ao mesmo tempo, no desespero de trazer "algo mais", a tendência muitas vezes é forçar limites, arriscar até a fronteira do irresponsável.
Uma legislação de imprensa, agora em debate no Congresso, deveria ser um instrumento que moderasse essas pressões de mercado. Quase nunca o jornalista erra com o propósito de errar, raramente existe a intenção de calúnia. O que existe é pressa e muitas vezes incompetência ou falta de isenção, misturadas confusamente ao intuito de noticiar.
Por isso os juízes evitam prender jornalistas. Até a Federação dos Jornalistas, órgão sindical, é contra a multa de 20% do faturamento das empresas. Mas multas comensuráveis, proporcionais para empresa e jornalista, quando identificado, em vez da atual pena de prisão, reduziriam outros assassinatos impunes: os da imprensa.

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