São Paulo, segunda-feira, 8 de julho de 1996
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Qual o segredo da América Latina?

JOÃO SAYAD

Édipo furou os próprios olhos. Hércules matou os filhos. Orestes, a mãe. O que é o destino? Não preocupa o destino-sorte, probabilístico, do indivíduo que perde o horário do avião que cai e mata todos os passageiros.
A preocupação é com o destino-vocação, o destino inexorável, o futuro predeterminado ainda que desconhecido, destinos que estavam escritos para vítimas que não sabiam ler.
São vítimas do destino os personagens e países que separaram uma parte de suas vidas, que tentaram sufocar uma parte viva do todo que não querem ver e que se vinga como um fantasma de alma insepulta e retorna como as Fúrias no teatro grego. O que não conseguimos ver na América Latina e no Brasil e se voltará contra nós, determinando nosso destino?
A "The Economist" faz um alerta: a América Latina, apesar de todas as reformas e do sucesso de diversos planos de estabilização, é muito volátil, cheia de surpresas. Por que será?
A revista aponta várias razões:
a) Instabilidade política - a região teve 253 constituições desde a independência, uma média de 12 por país;
b) Estes países tiveram e têm burocracias fortes e intervencionistas, apesar do zelo reformista;
c) Apesar de períodos de rápido crescimento, nenhum país atingiu a classificação de desenvolvido;
d) O continente é imediatista, quer resultados rápidos;
e) E, finalmente, o inexorável diagnóstico econômico: o continente tem baixas taxas de formação de poupança (!?).
O que há de errado e certo com esse diagnóstico? Não há dúvida que o continente é cheio de surpresas do destino, como nos livros de Gabriel Garcia Marques. Mas como conciliar a idéia de Estado intervencionista e burocracias fortes com tanta instabilidade política? E por que os países da região têm ou tinham burocracias fortes? Visão imediatista, concordamos, mas por quê? Falta ao diagnóstico um nível a mais de perguntas -por que somos assim?
Não sei a resposta. Mas a pergunta não sai da cabeça, quando vou a Brasília e falo com autoridades entusiasmadas, cheias de currículos, experiência de Brasil e boa vontade, mas perdidas nos pequenos problemas de falta de dinheiro e das notícias malvadas da imprensa.
Ou quando conheço empresários e empresas que realizam tarefas impossíveis, com tecnologias inacreditáveis em lugares insuspeitos, como a distribuidora Martins de Uberlândia. Quando converso com o setor financeiro, em geral dogmático, ideológico, defensor ferrenho do neoliberalismo, e escuto o banqueiro experiente concluir: as verdadeiras empresas brasileiras, que têm carne, osso, músculos, cultura e tecnologia, são as ex-estatais siderúrgicas, elétricas, petroquímicas e de aviões.
As respostas da "The Economist" são insatisfatórias. Esquece, por exemplo, que somos uma espécie de quintal da política monetária norte-americana.
A crise da dívida externa que marcou dez anos da nossa história, por exemplo, poderia ter sido evitada se os Estados Unidos adotassem o sistema de correção monetária -pois o Brasil conseguiria pagar os juros reais e capitalizar a inflação norte-americana como principal, como fazem os compradores da casa própria.
O que não conseguíamos era pagar mais 10% do principal de um ano para o outro, como juros nominais. Se a inflação e a correção monetária tivessem sido capitalizadas no principal, continuaríamos pagando correta e religiosamente os juros reais e não teria havido o México e os dez anos brasileiros de crise.
Agora, ganhamos os benefícios de uma expansão inédita da liquidez internacional, motivada, entre outras coisas, pelo déficit público norte-americano.
Somos mercados emergentes porque quando sobra liquidez internacional investidores e liquidez acabam chegando até aqui. Como uma praia distante e muito plana, onde pequenas variações da maré causam grandes variações na faixa de areia. A nossa grande instabilidade depende das pequenas instabilidades da política monetária norte-americana.
Mas a resposta não basta. E por que somos assim? Qual o segredo da América Latina e do Brasil que determina nosso destino? Em que lugar está escrito alguma coisa que não conseguimos ler?
A resposta mais forte e evidente salta aos olhos dos turistas nas ruas de todas as cidades latino-americanas: estão nas favelas, nos cortiços, nas construções mal ajambradas que recebem nomes diferentes em cada país, mas representam realidades iguais de pobreza.
Nós mesmos, acostumados com a paisagem, não vemos. A verdade bóia nas águas sujas de leptospirose das enchentes de todos os verões do nosso país tropical, explode no shopping de Osasco, envelhece na clínica Santa Genoveva, contamina os rins dos pacientes de Caruaru. Que segredo está escondido atrás deste "azar" permanente?

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