São Paulo, segunda-feira, 8 de julho de 1996
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"Mi Buenos Aires Querido" foge do kitsch

IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Por mais que a dita "imprensa especializada" esperneie, parece que não tem mais jeito: O "crossover" veio para ficar.
Depois do sucesso dos discos dos Três Tenores, todo mundo quer faturar.
Grandes artistas como Kathleen Battle se misturam a picaretas como Vanessa Mae, exercendo plenamente o direito de ser brega -e encher o bolso.
Daí o enorme cuidado de Daniel Barenboim ao falar de "Mi Buenos Aires querido". O pianista argentino assevera que a decisão de gravar o CD foi sentimental, impulsiva -estando, portanto, divorciada do pragmatismo cerebral das decisões mercadológicas.
Acreditemos ou não na pureza de intenções do artista, o fato é que se trata de um disco "crossover" bem diferente.
Arranjos de extremo bom gosto afugentam o kitsch e fazem deste um trabalho muito agradável de ouvir, sem abdicar, contudo, de uma certa sofisticação.
Embora o título venha de um tango de Carlos Gardel, "Mi Buenos Aires Querido" contempla, mais do que ninguém, Astor Piazzolla - autor de sete das 14 músicas escolhidas.
E o disco acaba tendo muito mais a cara da nostalgia pungente de Piazzolla que do sentimentalismo exacerbado de Gardel.
Não que se deva necessariamente opor um ao outro. Piazolla, que inclusive chegou a acampanhar o cantor na juventude, apenas teve a percepção de que havia vida após a morte de Gardel, pelo menos para o tango, e que este não deveria permanecer amarrado a convenções da década de 30.
Piazolla fundou um estilo mais adequado a seu tempo, trazendo contribuições do jazz e da música erudita -já que foi, como Baremboim, aluno da compositora francesa Nadia Boulanger.
Não se trata de superação de Gardel por Piazolla, mas sobretudo de diálogo e atualização.
Há um toque de refinamento, dado pelo tratamento camerístico das canções. Não se trata de um álbum de estrela solitária, em que Rodolfo Mederos (bandoneón) e Héctor Console (contrabaixo) figurem apenas para assegurar que o piano de Barenboim brilhe.
Pelo contrário, os músicos funcionam como um verdadeiro trio, em que um escuta o outro, e não procura se sobressair, nem em relação ao parceiro, nem em relação à música.
Quando quer aparecer mais do que todo mundo, o pianista simplesmente toca sozinho - o que acontece em "La moza donoza", de Ginastera, "Tzigane Tango" e "Adiós Nonino", de Piazzolla, e "Bailecito", de José Resta -e abdica do virtuosismo superficial em prol de leituras compenetradas, que evidenciam sua visão rígida dos ritmos do tango.
Resta torcer para que a "febre" argentina de Barenboim continue, e para que ele dedique à música erudita de seu país o mesmo carinho com que tratou a popular. Boas gravações das obras de Alberto Ginastera estão em falta no mercado.
(IFP)

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