São Paulo, quarta-feira, 10 de julho de 1996
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"Farewell" reencontra tom drummondiano

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ler "Farewell", de Carlos Drummond de Andrade (ed. Record), representa um considerável desafio para a crítica. O maior poeta do século 20 brasileiro deixou, antes de morrer, um volume pronto de poesias. O título do livro, "adeus", em inglês, já significa algo próximo ao legado, à herança, à mensagem final.
Tudo se torna duvidoso a partir daí. De um lado, pode-se tentar ler o livro como se fosse feito por um poeta desconhecido, avaliando a grandeza intrínseca dos versos ali publicados. De outro, pode-se ler o livro como se fosse a última mensagem, o testamento poético de Drummond.
Nunca lemos um poeta, entretanto, pelo simples valor dos versos que fez. Toda uma aura se agrega a seu nome, quando se trata de poeta famoso.
Desse ponto de vista, é um pouco frívolo e ingênuo considerar "'Farewell" o melhor livro de poesia publicado neste ano... Ainda que a poesia de Drummond seja imensa, até mesmo neste "Farewell", a competição mercadológica com os livros de poetas vivos lançados neste ano é bastante falsa.
Sinceramente, não sei como a crítica reagiria a este livro se tudo se tratasse de uma estréia de autor desconhecido. Para bem ou para mal, reagimos reconhecendo em "Farewell" o grande poeta que foi Drummond.
E é um prazer reencontrar, depois da morte, o "tom" drummondiano neste livro de poemas. Mas o que é, afinal, o "tom" de Carlos Drummond?
Não se trata de um poeta capaz de ser reconhecível com uns poucos versos, como João Cabral de Melo Neto. Não tem um "jeito" característico. É amplo demais para isso.
Ao mesmo tempo, ao escrever "Farewell", Dummond sabia que estava fazendo seu testamento poético. Tinha de rememorar ou resumir os grandes temas, os grandes modos, as dicções básicas de sua poesia.
O que encontramos, ou reencontramos, então? Drummond foi vanguardista nos anos 30 e sonetista nos anos 50. Espraiou-se nos grandes poemas humanistas de "A Rosa do Povo", foi casual nas crônicas, foi rigoroso, objetivo, seco, na poesia-com-coisas que fez a partir dos anos 60 ("Lição de Coisas", "Boitempo").
Sente-se, em "Farewell", como que o embaraço de resumir uma trajetória poética tão ampla. Onde está o resumo de tudo?
Talvez o encontremos nos versos finais de "Duração" (pág. 55) onde ele fala que há de restar, da criatura, que ela "morta, de amor ostente a fúria". Neste verso magnífico, encontramos muito do Drummond que já conhecíamos: o amor raivoso, o amor frustrado, a fúria de amar, isto é, o desespero que há no amor, quando sabemos que nem só o amor pode ser correspondido por outra pessoa, mas, pior ainda, que nem nós mesmos correspondemos ao amor que somos capazes de ter.
Há sempre um déficit - "A Falta que Ama" é o título de um conjunto de versos de Drummond; essa incompletude subjetiva, os lábios que se quedam cerrados, o homem que, tímido ou seco, não se entrega às utopias, às solidariedades, será sempre a imagem de Drummond.
Nesse ponto, ele é o poeta lírico por excelência do mundo moderno -consciente de seus apelos coletivistas, mas resistente, frio, seco, incapaz de amar -já que o mero fato de amar seria um ato de retórica (sabemos o quanto Pablo Neruda, por exemplo, era retórico, e não lírico, em seus poemas).
"Farewell" joga o tempo todo, também, com o tema da memória. A memória de um passado rural, e também a memória de um passado urbano, onde, como no velho Hotel Avenida, celebrado por ele num poema gigantesco, se funde a realidade e o imaginário num edifício pessoal.
"Cabaré Palácio", poema deste volume, rememora o poema anterior sobre o Hotel Avenida. Muitos poemas rememoram a "Vida Passada a Limpo", volume dos anos 50. É como se Drummond tivesse sobrevivido à própria obra, e no momento de dar contas de sua vida inteira, não tivesse nada mais a fazer do que dar contas de uma obra já feita, ela própria, sob o signo da memória.
Estamos assim diante de um livro que é como que uma memória em segundo grau; o olhar retrospectivo se volta, não mais sobre si mesmo -coisa que Drummond sempre fez- mas sobre a própria obra. Os ecos de poemas passados não param de ressoar; mas isto não faz de "Farewell" um livro apenas póstumo, apenas sobrevivente de um naufrágio, o da vida do poeta.
Ao contrário. Não se trata tampouco de um resumo dos velhos "temas" drummondianos, útil a vestibulares por exemplo. O que há de "drummondiano" no livro é mais do que a mera repetição de sinais característicos, de tiques de poeta profissional.
Há, como sempre, a marca de uma vida que se recusa a completar; que mesmo entregando-se à memória, não consente em um ponto final. Entre o corpo limitado e pobre, e o desejo imenso, cósmico, de amor, há um intervalo, uma separação, que talvez seja o verdadeiro tema da poesia drummondiana -sempre insatisfeita, sempre completa, até mesmo em um último livro, em um testamento: mensagem final, portanto, mas não definitiva, sempre ansiosa, sempre pedindo ao leitor que seja este, e não o poeta, quem viva e ame, para além das palavras, que estas sempre silenciam.

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