São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

De Palma reelabora jogo da espionagem

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Existe uma velha cumplicidade entre cinema e espionagem. Floresceu nos anos 30, com o nazismo, e prosperou nos 50 e 60, graças à Guerra Fria. Dessa cumplicidade surgiu "Missão Impossível", série de TV que marcou época entre 1966 e 1973.
Na virada dos anos 90, o comunismo foi para o beleléu. É deste último fato que nasce "Missão Impossível", o filme. Com o fim da divisão do mundo em capitalismo e comunismo, a espionagem deixa de fazer sentido e o cinema perde sua alma gêmea.
Alma gêmea porque cinema e espionagem são, ambos, artes da trama, do engano. Há neles algo de um joguete, que consiste em ludibriar os olhos de quem vê (o filme ou os gestos do espião).
Assim, não é de espantar que "Missão Impossível" se dedique a narrar um enredo intrincadíssimo, em que duas agências de espionagem norte-americanas disputam documentos secretos e se boicotam mutuamente.
Com Hitchcock, aprendemos o sentido do termo "MacGuffin": é algo em torno do que os personagens rodam e se debatem, mas cuja importância é rigorosamente nula.
"Missão Impossível" potencializa essa figura, já que tudo aqui é MacGuffin: a transação com compradores de segredos de Estado, o falso agente, a mulher fugidia (Emmanuelle Béart). A trama é um enorme fundo falso, onde segredos surgem e desaparecem.
Mesmo o protagonista (Tom Cruise) não tem nenhuma existência palpável. Existe como a âncora a que o espectador se apega para compreender a evolução diabolicamente intrincada da narrativa.
Na essência, De Palma usa a espionagem como instrumento que lhe permite construir cenas fantásticas (a invasão aos arquivos da CIA, a luta em cima de um trem TGV). Ao mesmo tempo, esvazia-a.
Ao longo do filme, os clichês do gênero espatifam-se, jogados um contra o outro. Não têm valor ou sentido, exceto o de propiciar que o cinema se instale como puro objeto lúdico.
E é nesse conceito de lúdico que se pode enquadrar o ritmo alucinante (pela precisão, nem sempre pela rapidez), a visão de dois quilômetros de Praga -uma Praga mais misteriosa do que nunca- os enquadramentos desconcertantes e até mesmo as remissões à série (a música, as máscaras, a fita que se autodestrói).
Assim, é possível que, no ponto de partida, "Missão" seja um trabalho menos pessoal de De Palma, desses que fazem sucesso e lhe permitem fazer em liberdade os filmecos de que tanto gosta.
Na chegada, porém, não é isso que se vê. "Missão Impossível" é um filme de alto risco: rejeita as modas em vigor (da violência ao romantismo), recusa o vínculo fácil com a velha série, não trata o espectador como tolo.
Se possui essas virtudes negativas, também é uma obra afirmativa, que busca o núcleo do cinema (a imagem, a narração) como fundamento. Nisso, há um abismo entre "Missão" e "Twister", digamos. Este último recupera, à la Spielberg, o vínculo com o cinema de estúdio e toma como base os efeitos. Em "Missão", é o prazer de filmar que se reencontra, como nos grandes clássicos.
A tarefa a que este filme se propôs era fazer sucesso no mundo dos "blockbusters", tão inóspito para o cinema-cinema. Missão árdua. De Palma fez isso e também o melhor filme do ano até aqui (apesar ou graças às interferências de Cruise): missão cumprida.

Filme: Missão Impossível
Direção: Brian De Palma
Elenco: Tom Cruise, Emmanuelle Béart
Quando: a partir de hoje, nos cines Metro 1, Gemini 2, Eldorado 4 e circuito; a partir de amanhã também nos cines Astor, Top Cine, Center Iguatemi 1 e circuito

Texto Anterior: 'Missão Impossível' faz de Cruise um herói
Próximo Texto: Stonewall é preferido do público nos EUA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.