São Paulo, sexta-feira, 12 de julho de 1996
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Riscos da globalização

EMIR SADER

O fim da história já tem história. Desde sua proclamação, muito capital já voou de bolsa em bolsa, muitos paradigmas foram questionados e repensados, muitas convicções foram abaladas e reassumidas. O próprio Fukuyama dedicou seu último livro ao tema da "confiança", como seu próprio título menciona, dada a extrema volatilidade do capital financeiro que comanda esta época histórica sem história.
Ao promover um seminário sobre o tema "Liberalismo e Socialismo" -para o qual trouxe intelectuais de obra significativa como Ernest Mandel, Elmar Alvater, Giacomo Marramao, Robert Kurz e Boris Kagarlitsky, e aos quais se somou um grupo de intelectuais brasileiros-, a Unesp mais uma vez deu sua contribuição ao debate teórico. Os temas foram bastante variados: razão e história, sociedade do trabalho, produção e mercado, massa, poder e democracia, Estado e bem público, concluindo-se com um debate entre os convidados estrangeiros.
Resenhar um livro com temática tão ampla e diferenciada -abordada por pensadores que, apesar de um marco comum de crítica às tendências predominantes de assimilação passiva da globalização, de questionamento dos paradigmas clássicos sem apresentar alternativas de capitulação diante das novas variantes neoliberais, se difereciam em vários aspectos importantes- é sempre um risco de se apresentar uma versão parcial e redutora da riqueza do seminário.
Felizmente, o debate final permite recolher, de forma sintética, as visões dos convidados estrangeiros, pelo menos.
Antes, porém, é preciso destacar que Elmar Altvater -que teve recentemente publicado pela Edunesp seu último livro, "O Preço da Riqueza"- aborda em sua exposição as transformações recentes do trabalho, discutindo seus efeitos sobre o mercado de trabalho e suas projeções sobre o plano político. Mandel -de quem foi recentemente publicado seu "Trotsky como Alternativa" e de quem será publicado proximamente o estudo sistemático sobre a burocracia no capitalismo e no socialismo, "O Poder e o Dinheiro"-, fala da atualidade da alternativa socialista em época de hegemonia neoliberal. Marramao parte dos paradoxos do universalismo, para abordar o indivíduo e a comunidade no mundo global. Enquanto Boris Kagaslitsky se pergunta sobre os destinos da utopia liberal depois da derrubada do comunismo.
Quando se estabelece o debate, o primeiro contraste vem da esperança positiva, que Ernest Mandel nunca abandonou, numa resistência organizada e capaz de reverter as ofensivas conservadoras, e do catastrofismo assumido de Robert Kurz. Para este, ainda que doloroso, o adeus aos paradigmas liberal e socialista é inelutável. Ao manter-se no universo das "sociedades do trabalho", o socialismo reproduziu, a seu ver, o que ele chama de sua "mentira vital": a manutenção do fetichismo, ao lado do projeto de desfetichizá-lo. Um socialismo da modernização tardia terminou se esgotando junto com o capitalismo.
Para Kagarlistky, seria demasiado cedo para se fazer um balanço do século. E para Mandel, decretar o esgotamento do paradigma marxista pelo fim da URSS seria aceitar que ali se puseram em prática os critérios de Marx para a construção do socialismo.
Segundo Alvater, algumas novidades em relação ao capitalismo do tempo de Marx têm que ser consignadas: a globalização que, embora prevista por Marx, não existia na época e hoje tem que ser analisada, não só como processo concreto, mas também como ideologia. A segunda é, para ele, a lacuna do pensamento marxista em relação às questões políticas, citando Gramsci como portador dos avanços mais significativos. A terceira é a ecologia, em relação à qual o marxismo seria a única teoria que poderia dar conta, mediante o duplo processo de trabalho, se pensamos que o valor de uso é algo ecológico, algo material.
O debate sobre a vigência dos paradigmas hoje, se não parte das condições históricas concretas do capitalismo contemporâneo e dos processos hegemônicos, dificilmente pode encontrar um terreno comum de discussão e representar um avanço, mais além de metodologias previamente assumidas. O socialismo nasceu historicamente como anticapitalismo. Sua renovação só pode, portanto, se dar como negação e superação concretas do capitalismo realmente existente. Nesse sentido, falta ao marxismo contemporâneo essa capacidade de análise que alguém como Ernest Mandel exibia com riqueza e talento. Como ao conjunto das ciências sociais atuais falta a história, condimento indispensável para se pensar o presente como resultante do passado e para se descobrirem nele as múltiplas potencialidades do futuro. Porque a aceitação passiva da globalização como algo inelutável, cujas consequências temos que lamentar em discursos diplomáticos, é outra forma de decretar o fim da história. Um fim que, na realidade, é sempre um recomeço.

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