São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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Prêmio à sabotagem ou o harém do dinossauro

ROBERTO CAMPOS

Duas decisões desastrosas provam que o liberalismo privatizante dos tucanos é fé débil de cristão-novo. Ao entregar à Petrossauro o controle acionário do gasoduto Brasil-Bolívia, o governo dá um prêmio à sabotagem, porque outra coisa não fez o monopólio senão sabotar o projeto durante 31 anos. O dinossauro terá ainda outro prêmio. Conforme o projeto de lei que acaba de ser submetido ao Congresso, não só abiscoitará as áreas em efetiva produção, mas gozará de uma reserva de mercado por três anos sobre as bacias em que tenha feito alguma pesquisa. O governo se comporta como um cafetão, que mantém um harém no qual o dinossauro poderá escolher as zonas mais apetitosas para exploração eventual. Nesse interregno, para os investidores privados só restam duas opções: ou esperar três anos para saber quais as zonas sobrantes dignas de interesse, ou fazer parcerias com o dinossauro, que certamente insistiria em ter controle majoritário. Isso seria uma "estatização da poupança privada". E os investidores, nacionais e estrangeiros, fariam o papel de eunucos no harém...
Contemos a estória da sabotagem, de que fui testemunha e vítima. No governo Castello Branco (nov. 1965), sendo eu ministro do Planejamento e Mauro Thibau ministro de Minas e Energia, apresentamos ao Conselho de Segurança Nacional o projeto de construção de um gasoduto de Santa Cruz a São Paulo. O assunto me preocupava desde o governo Kubitschek, quando perdemos, numa explosão de irracionalismo nacionalóide, a oportunidade de explorar as concessões de petróleo obtidas da Bolívia pelo Tratado de Roboré. As vantagens do gasoduto eram óbvias. Adquiriríamos uma fonte mediterrânea de gás. Diversificaríamos nossa matriz energética, somando-lhe um combustível mais barato e menos poluente (até hoje pela indiferença e incompetência do monopólio, o gás representa apenas 2% dessa matriz). A industrialização tenderia a interiorizar-se ao longo do eixo São Paulo-Campo Grande, sem o congestionamento poluidor que hoje aflige São Paulo e a Baixada Santista. As divisas de exportação de gás abririam o mercado boliviano para a indústria paulista. Cogitava-se de uma siderurgia de redução direta em Corumbá, com participação acionária da Bolívia, Paraguai e Uruguai. O BID e o Banco Mundial viam com interesse esse plano de integração regional. E grandes empresas como a Tenessee Gás e a Gulf Oil se encarregariam da montagem técnica e financeira. Haveria uma explosão de progresso no Centro-Oeste!...
Quando a reação no Conselho de Segurança se prenunciava favorável, o gal. Costa e Silva, então ministro da Guerra, pediu vista do processo. Na reunião seguinte opinou negativamente, num parecer que tinha as marcas digitais da Petrossauro. Em razão da grande tensão nas Forças Armadas, pela ridícula briga da aviação embarcada, Castello optou por ganhar tempo mediante a criação de um grupo de estudos, cuja chefia coube ao gal. Ernesto Geisel, secretário-geral do CSN. Era como entregar a Herodes o berçário, pois Geisel tinha fascínio ideológico pelo monopólio. As alegações petrossaurinas eram pretextos. A Bolívia, dizia-se, era politicamente instável e ficaríamos vulneráveis se a indústria paulista fosse reconvertida para o gás. Argumentei que historicamente as instalações petrolíferas escapam dos conflitos internos, pela essencialidade das divisas de exportação. E haveria interdependência, pois os fornecimentos da indústria paulista se tornariam essenciais para a Bolívia. O real motivo era que a Petrossauro considerava humilhante não ter até então reservas de gás, queria manter a indústria cativa do óleo combustível de suas refinarias e era alérgica a qualquer vislumbre de concorrência. Ao longo de três décadas a questão ressurgiu, várias vezes, por provocação boliviana, mantendo a Petrossauro sua postura obstrucionista. Devemos ao presidente Collor a formalização do acordo para construção do gasoduto. Tudo desaconselha entregá-lo à Petrossauro. A praxe mundial é que as empresas produtoras e transportadoras de gás sejam separadas das empresas predominantemente petrolíferas, precisamente para se encorajar a concorrência entre os dois combustíveis, em benefício do consumidor. O Banco Mundial não deseja financiar a Petrossauro, pois acha que o Brasil precisa privatizar suas estatais para adquirir competitividade e solvência fiscal. A presença governamental no gás boliviano melhor se faria através de companhias estaduais, como a Comgás de São Paulo, em associação com capitais privados. Isso traria o benefício da descentralização administrativa e sintonizaria melhor com os dispositivos constitucionais que reservam aos Estados o controle do gás canalizado. É aliás o que o governo do Paraná pretende fazer em relação ao gás argentino.
A segunda má notícia é a chegada ao Congresso do projeto de lei que regulamenta a flexibilização do monopólio. O texto passou por várias edições, mas continua um "bebê de Rosemary". A preocupação do projeto não é criar uma agência regulatória independente e sim tornar a Petrossauro independente, libertada de entraves burocráticos e cercada de privilégios. Criam-se duas entidades dependentes -a ANP e a CNPP- "vinculadas" ao ministério de Minas e Energia, modelo surrado, que garante a ineficácia da regulação. A tradição brasileira, como diz Sérgio Abranches, é a da "captura do regulador pelo regulado". A Petrossauro sempre dominou o velho Conselho Nacional do Petróleo; o Dnaee era inexpressivo face à Eletrobrás, e os antigos Contel e Dentel foram ofuscados pela Telebrás.
O único meio de se romper essa tradição, passando-se da cultura monopolista à cultura regulatória, é a criação de uma entidade dotada de independência face ao Executivo, com diretores de mandato fixo, nomeados pelo presidente da República, mas aprovados pelo Senado Federal. A agência terá de arbitrar conflitos entre o setor público e privado, promovendo a concorrência e contrariando frequentemente interesses expansionistas da burocracia estatal.
Defeitos anteriormente apontados no projeto não foram corrigidos. Como diz o secretário de Energia de São Paulo, David Zylbersztajn, a Petrossauro manterá por três anos áreas superiores à sua capacidade efetiva de exploração, adiando investimentos privados que poderiam gerar empregos, e dificultando a privatização das empresas estaduais de gás. A reserva de mercado da Petrossauro deveria ser confinada às "áreas que tenham produção", ou, no máximo, às áreas onde tenham sido realizados "investimentos substanciais na exploração". Todo o resto deveria ser aberto imediatamente à licitação. Permanece um sotaque dirigista: retarda-se por três anos a liberação de preços e as importações ficam subordinadas a licenciamento pela ANP, o que desencoraja o surgimento de refinarias privadas. A única tarefa que deveria caber à ANP é definir e custear os "estoques estratégicos". O problema mais importante, durante a transição, será franquear o acesso de todas as concessionárias aos dutos e terminais de transporte construídos pela Petrossauro em virtude de seu privilégio monopolístico. O desejável é que a União faça uma cisão patrimonial, separando os terminais e dutos de transporte (assim como as linhas de transmissão de eletricidade) como prestadores de serviço aos concessionários, com tarifas fixadas pelas entidades regulatórias.
Para o encontro de contas entre a Petrossauro e a União, é imprescindível uma auditoria externa independente. A estrutura de custos da Petrossauro sempre foi uma caixa preta. Ela se credita pela diferença entre o preço interno regulado e os preços internacionais, o que só seria justificável se tivesse pago royalties e impostos aos níveis internacionais. No período 1991/95, a Petrossauro, que pela lei de Sociedades Anônimas deveria distribuir ao Tesouro dividendos de US$ 1,8 bilhão, só pagou US$ 447 milhões. Por contraste, doou à Petros US$ 1,2, quantia que hoje se sabe insuficiente para cobrir os rombos atuariais. Haverá muita conta desencontrada no encontro de contas...
O Congresso Nacional deverá fazer cirurgia plástica no projeto e alguns transplantes. Uma boa idéia, sugerida por Edmar Bacha, seria a privatização da BR Distribuidora. A renúncia à privatização da Petrossauro foi uma promessa de FHC durante seu tucanato, mas não deve constar da lei, para não engessar a ação de futuros governos, mais valentes ou simplesmente mais realistas...

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