São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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Uma aventura nas águas de Melville

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Ao contrário do que afirma o crítico Otto Maria Carpeaux (1900-1978) de modo surpreendentemente leviano em sua "História da Literatura Ocidental", o romance "Moby Dick", de Herman Melville (1819-1891), é mais, muito mais do que um simples "manual da pesca das baleias" ou do que uma "epopéia dos esforços inúteis da humanidade contra as forças da Natureza". Quem quer que faça uma leitura descompromissada das quase mil páginas desta obra, publicada em 1851, haverá de concordar com isso.
Já se disse que a perseguição obsessiva e desvairada ao cachalote branco, empreendida pelo capitão Ahab, é na verdade a procura da origem dos males do próprio capitão, e, a partir deles, dos males de toda a humanidade, em particular sua porção cristã.
Assim, o navio baleeiro "Pequod", relatado por Melville, com sua tripulação de corajosos marinheiros e de arpoadores heróicos, das mais diversas origens, traria dentro de si o mundo inteiro -fadado, diga-se, ao desastre absoluto.
O gaúcho de Pelotas Vitor Ramil, 34, conhecido em seu Estado como compositor e letrista, apostou nisso, mergulhou naquela obra e extraiu dali a imensidão poética e metafísica, por assim dizer, que ela contém, para criar seu romance de estréia, intitulado justamente "Pequod".
Trata-se de uma miniepopéia em que o narrador procura desvendar os mistérios do pai, chamado simplesmente Ahab, o qual, por sua vez, enfiado em seu "quartinho de aranhas", busca descobrir a combinação criada originalmente para as 49 gavetas de um móvel elaborado por seu pai, Manuel, avô do narrador.
A busca de Ahab, na verdade, desdobra-se em outras, faz-se por meio de várias buscas, particularmente a da perfeição pela linguagem. Seu projeto maior, nas palavras de um amigo, o extravagante Dr. Fiss, é o seguinte: "Escrever poemas, submetê-los a um desmonte, e construir uma estrutura com suas palavras distribuídas e coladas sobre as páginas dos livros encadernados". Escrever poemas como as aranhas tecem as suas teias. Delírio total? Talvez.
Em sua aparente loucura, esse Ahab criado por Vitor Ramil, conforme detectamos aos poucos no decorrer do livro, incorpora em si duas figuras, uma fictícia e outra real. De um lado, o já citado capitão Ahab de Melville; de outro, o pintor florentino renascentista Paolo Ucello (1397-1475), conhecido não apenas pela obsessão no estudo da perspectiva, da qual foi precursor, mas também por suas excentricidades, recolhimento e aversão social.
A prosa de Ramil é fria, econômica, sem sentimentalismo. Ao mesmo tempo, porém, o autor consegue fazer-nos sentir com vivacidade as imensas apreensões do narrador, o filho de Ahab, herdeiro de tantos enigmas.
À página 78, esse narrador atônito afirma:
"Eu não queria dizer o que eu sabia. Eu não queria que soubessem que eu estivera no casarão do Dr. Fiss. Eu não queria que eu estivera lá. Eu não queria o que eu sabia. Eu queria é que o tapete verde estivesse em seu lugar, não torto em relação às tábuas do assoalho e enrugado sob o pé palito do sofá de napa vermelha (...) Ninguém em casa, exceto eu, entendia o estado de Ahab. E eu tinha vontade de lhe pedir perdão pelo que sabia".
Os verdadeiros enigmas não se resolvem de modo definitivo, prolongam-se em outros. Podem, no entanto, ser enfrentados e, em certa medida, dissolvidos. Quando isso ocorre, passam a significar, em si mesmos, a morte. A perfeição da linguagem associa-se, assim, à perfeição da vida, dá-lhe sentido, na verdade: uma vez alcançada, pode-se descansar em paz. Ensina-nos Ramil, então, que a busca da perfeição pela linguagem é, no fundo, uma preparação para a morte -a morte bem concreta, no caso, de Ahab, de Manuel, do Dr. Fiss.
Em certo momento, durante uma viagem que faz com o pai a Montevidéu (o enredo se passa, na maior parte, na cidade fictícia de Satolep, anagrama de Pelotas), o narrador, inflado de ousadia, pergunta a Ahab: "Por que não gostas que eu te chame de pai?". Ahab responde: "Porque eu não quero que haja distância entre nós".
Com efeito, a palavra "Pequod" não aparece senão em epígrafe no belo livro de Ramil, mas o leitor capta, à leitura da obra, que, se a vida de cada um, tal como o navio baleeiro de Melville, pode naufragar gloriosamente, uma atrás da outra, na busca de uma luz perfeita, haverá em seguida, inexoravelmente, uma nova chance, um ser igual, por assim dizer, uma nova embarcação, como o narrador sem nome, barco-homem, a preparar-se no cais para outra longa e (sempre) tumultuada viagem, pela linguagem, na linguagem e fora dela.

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