São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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A censura italiana a "O Guarani"

SILVIO BONACCORSI BARBATO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A censura italiana a "O Guarani"
Através das múltiplas fases da pesquisa realizada para a execução do projeto de edição crítica da partitura da ópera "O Guarani", observamos a obra-prima de Carlos Gomes exposta a uma intrincada rede de problemas significativamente similares àqueles enfrentados por Rossini, Donizetti, Bellini e Verdi -o "quadriviratum" da ópera italiana no século 19.
O sistema político, a organização teatral fundamentada em modelos setecentistas e o forte peso dos valores comerciais mantinham a Itália operística numa posição diferenciada em relação aos países transalpinos.
Essencialmente no que se refere a "O Guarani", o núcleo desta rede consiste em três tópicos básicos, dois dos quais são compartilhados com os mestres italianos. Primeiramente, certos temas políticos eram suprimidos pelo controle censorial sobre os espetáculos teatrais. Em segundo lugar, a "praxis" teatral italiana criava conveniências e inconveniências para a performance das óperas. Finalmente, no caso específico de Gomes, seu status social de estrangeiro engendrava dificuldades.
A questão política distingue-se no primeiro plano narrativo da ópera. Quatro relevantes questões incluídas na partitura original de "O Guarani" provavelmente foram objeto de censura durante o processo de criação e performance. No romance de José de Alencar, o aventureiro conspirador era um italiano de nome Loredano. Já na primeira tradução italiana (Seraffiono Muggiani e Comp., Milão, 1864), a nacionalidade de Loredano é, por motivos óbvios, omitida. No estágio sucessivo, que corresponde ao libreto utilizado para a composição da ópera, o conspirador é definitivamente transformado no espanhol Gonzales.
No segundo ato, o inédito "Racconto" de Gonzales (ex-Loredano), descreve a cena em que Roberto Dias, descobridor de uma mina "ricca di puro argento" (rica de pura prata), encontra-se gravemente ferido. Ao pedir abrigo num convento, foi acolhido por um frade que salvou a sua vida. Ruy e Alonso exclamam: "Por Deus o que disseste?... -um frade foi honesto? O caso foi estranho...". Mas Gonzales prossegue: assim que o frade obteve o segredo da localização do tesouro, assassinou Roberto Dias. De novo Ruy e Alonso intervêm: "Oh frate d'inferno!", seguidos de imediato pela surpreendente revelação de Gonzales de que era ele que estava travestido de frade.
Outro provável ponto de convergência para a atenção dos censores era a problemática representação do amor de Cecilia, mulher branca portuguesa, pelo índio Pery, da tribo dos Guaranis. Tanto no romance de Alencar quanto na concepção original de Gomes, esta união representa filosoficamente o nascimento do povo brasileiro. No século 16, período em que se transcorre a ópera, as tribos Guarani e Tupi, que viviam na costa atlântica, foram as primeiras a ter contato com os colonizadores. Entretanto, este caso de amor inter-racial, transposto para o palco do La Scala, previsivelmente poderia contrariar a sensibilidade do público italiano.
Finalmente, a contraposição entre os conspiradores e o poder institucionalizado está no centro da ária de Dom Antonio no quarto ato, "Prodi e Fedeli un Giorno" (Pródigos e Fiéis um Dia). Nela, Dom Antonio clama "L'onor del suol natio", a honra do solo nativo. No contexto histórico da estréia de "O Guarani" no La Scala, a unificação da Itália não havia sido concluída, o que aconteceu somente em setembro de 1870, com a anexação de Roma. O processo "risorgimentale" foi dirigido por uma elite intelectual, e a sua fragilidade ainda era identificável nos núcleos regionais de banditismo e no descontentamento das massas populares empobrecidas e excluídas da vida política.
Dentro deste quadro, parece-nos plausível considerar a manutenção de fortes mecanismos de controle e repressão governamental, em que contraposição de poderes e reivindicações de natividade mantinham-se ainda como assuntos altamente polêmicos. Na realidade, as quatro questões precedentemente apresentadas eram alvos potenciais para a censura, devido ao seu verdadeiro conteúdo e pela relação que estabeleciam com cidades e cidadãos de toda a Itália.
A ária de "Sortita" de Cecilia no primeiro ato está inteiramente transposta por Carlos Gomes um semitom abaixo. Os detalhes musicais presentes nesta intervenção nos indicam uma tendência a ampliar o destaque da parte vocal. Provavelmente a modificação foi realizada para Maria Sass, a Cecilia da noite de estréia "alla Scala". Neste caso, o propósito estaria nos desejos imperiosos da diva, com uma adaptação da partitura às suas capacidades vocais, maximizando o efeito sobre o público. O autógrafo demonstra a caligrafia premente do compositor, com ausência da notação das partes corais e dos outros personagens que participam da cena, imprecisão rítmica e instrumental, indícios de uma mudança de última hora, provavelmente com os ensaios já em estágio avançado.
A "Scena e Duettino" (terceiro ato) entre Cecilia e o Cacique também é transposta por Gomes um semitom abaixo. Aqui Gomes revisa, sobre o extrato manuscrito do copista, a harmonia, a instrumentação e a parte vocal do barítono. Além disto, Gomes acrescenta uma nova cadência final de oito compassos para o Cacique, com "obbligato" orquestral, indicando a atenção com que o compositor trabalhou sobre a peça. Esta revisão autógrafa favorece notavelmente a importância musical e dramatúrgica do Cacique, o que pode estar relacionado com o fato de que Victor Maurel só cantava neste ato, pois o Cacique é morto com a chegada dos portugueses ao final do terceiro ato. A mesma situação é encontrada na ária de Pery que abre o segundo ato. Aqui, mais uma vez, Gomes indica a transposição de um semitom inferior, registrando no manuscrito que foram feitos "piccoli accomodi" (pequenos acomodamentos) antes da estréia para o tenor Giuseppe Villani. Parece-nos claro que Gomes joga todas as suas cartas no trio Sass-Villani-Maurel.
Continuando a análise e contextualizando-a com as críticas publicadas na época, somos levados a considerar que as outras modificações efetuadas por Carlos Gomes foram realizadas com o intuito de enfrentar as limitações vocais do restante da companhia de canto. A partitura de "O Guarani" requer oito vozes masculinas, que se contrapõem ao único personagem feminino, Cecilia. O elenco de personagens apresenta o "primo tenore" Pery, o "primo basso" Dom Antonio, dois importantes papéis baritonais, Gonzales e Cacique, um "secondo tenore", Alvaro, e os comprimários Pedro e Alonso, baixos, e Ruy Bento, tenor.
No interior deste sistema, Gomes tinha um papel distinto, definido pelo seu status social de estrangeiro, num meio essencialmente europeu. Uma leitura coerente das modificações autógrafas da partitura de "O Guarani" deve considerar que as pressões sobre Gomes podem ter sido maiores do que as normalmente impostas ao exórdio de um compositor europeu.
Nas críticas então publicadas em Milão, podemos observar uma tendência ao uso de termos como "giovine" (jovem), "esordiente" (estreante) etc., numa moldura conotativa de uma certa condescendência, e até mesmo num contexto diminutivo em relação ao compositor e sua obra. Estes próprios termos podem ser com dificuldade aplicados a Gomes. Na época da estréia, Gomes tinha 34 anos, e no Brasil já tinha estreado duas óperas, "A Noite do Castelo" (1861) e "Johanna de Flandres" (1863). Também havia participado ativamente, como regente, compositor e intelectual, do movimento pró-Ópera Nacional, que desejava, nas palavras de José de Alencar, "uma ópera nacional de assunto e música brasileira".
Não é difícil deduzir o estado d'alma de Gomes com o dia-a-dia do Conservatório de Milão, como bem descreve numa carta a Francisco Manoel da Silva, diretor do Conservatório de Música da Corte do Rio: "...Estou escrevendo uma missa para exercitar-me... faço o que posso para não escrever para a igreja música de teatro! como sejam: 'cabalettas', 'estrettos' e 'allegros estrepitozos'..."
Para adquirir esta perspectiva do "debutante" Gomes, é necessário que o observemos com os olhos coloniais europeus. Gomes não era europeu, nem italiano. Para os seus contemporâneos italianos ele, tal como Pery, também era um "selvaggio indiano": "Este selvagem elegante e caprichoso... é uma das mais honestas e generosas personalidades que eu já conheci. Não tenhais medo! Aproximai-vos! Apertai-lhe a mão com confiança e afeto! Aquela que vos é estendida com digno orgulho é a mão de um gentil-homem...".
Certamente estas palavras de Antonio Ghislanzoni, libretista de sua próxima ópera, "Fosca", e da "Aida" verdiana, não são meramente uma similar coincidência com aquelas da ária de "Sortita" de Pery no primeiro ato:
"Gonzales: Um índio!
Todos: Salve!
Dom Antonio: Aproxime-se, amigo...
Gonzales: (com ironia) Mas quem és tu? Responde? Tu que a nós todos admiração infundes?
Pery: Pery me chama em sua língua/ o povo heróico dos Guaranis.../ Filho de reis, não há perigo/ que recuar temeroso seja Pery.
Dom Antonio: Irmão e amigo/ à frente de cada um te chama o velho fidalgo.
Pery: E um verdadeiro amigo eu sou!
Todos: Qual nobre olhar!".
O conjunto das circunstâncias acima mencionadas basta à compreensão da inerente complexidade da edição da partitura original de "O Guarani". A realização da edição crítica da ópera é consoante à preocupação do autor na preservação de sua obra-prima, conforme as suas próprias palavras autografadas no frontispício do manuscrito da Biblioteca Nacional: "Em cada evento, esta cópia mista pode servir de autógrafo porque revista pelo autor". Esta nos parece ser a forma mais elevada de homenagear o seu centenário.

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