São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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Faustão mistura carolice com 'show de buzanfas'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se alguém fosse contar a história do destampatório verbal da TV brasileira, iria encontrar em Fausto Silva um precursor. Através dele, expressões como "pentelho", "não enche o saco" e "buzanfa" passaram a integrar o repertório de um veículo desde sempre cercado por cuidados e interdições.
Frases como "se a senhora está insatisfeita, se o seu marido não dá mais conta do recado, chama o Ricardão" ganharam com Faustão direito de cidadania, foram legitimadas na sua voz, viraram uma espécie de sobremesa obrigatória dos almoços familiares de domingo.
Fisgado do jornalismo esportivo, onde fez carreira como repórter de campo, o apresentador trouxe para os programas de auditório o vocabulário chulo, a falta de modos e as cafajestadas que naquele meio funcionam como uma espécie de segunda natureza.
Na época do "Perdidos na Noite", na TV Gazeta, a fórmula tinha o charme que se atribui às coisas subdesenvolvidas. Como a produção do programa era mambembe, como nada ali funcionava mesmo, escancarar a avacalhação e explorar a porcaria eram verdadeiros achados, atos quase "subversivos", cuja espontaneidade rivalizava e punha a nu tudo o que havia de almofadinha, de postiço, de encenação nos programas similares das emissoras ricas.
A Globo, sempre atenta, tratou de neutralizá-lo. Incorporou-o ao seu time, como fez com os redatores do "Planeta Diário" e, em certa medida, com o humor até então difícil de digerir de Regina Casé.
O resultado, mercadologicamente muito bem-sucedido, é este que aí está: a pasteurização da baixaria e a normalização do escracho -que perderam a "ingenuidade" de quem não tem compromisso com nada para ingressar na "era científica" de quem está sob o fogo cerrado da hiperconcorrência.
Como exemplo desse processo, basta lembrar o que eram as chacretes, gorduchas, desengonçadas, cafonas, atraentes apenas na medida em que eram grotescas. Pois bem. No "Domingão", a indolência e a languidez daquelas senhoras cedeu lugar aos gestos militares de adolescentes esquálidas, cujos sorrisos metálicos e coreografias mecanizadas competem com qualquer fábula de George Orwell.
Todos sabem que, em matéria de permissividade para consumo das massas, se havia ainda alguma porta por ser arrombada, o fenômeno dos Mamonas terminou de cumprir a tarefa. Depois deles, a fronteira entre o que pode e o que não pode ser dito ou exibido, inclusive para crianças, ficou mais elástica do que nunca. Talvez por isso, Faustão possa pôr no ar, às 4 da tarde, Valéria Valenssa completamente nua e chamá-la de "mulata da buzanfa tipo exportação", sem que isso agrida ninguém, descontadas as exceções de praxe.
Mas esse lado, digamos, politicamente incorreto do programa explica só metade do seu sucesso.
O fato é que, ao globalizar-se, Faustão acrescentou ao seu papel de espírito de porco profissional um outro, aparentemente oposto, mas complementar, que podemos chamar de "pai de família".
Afinal, não é ele quem sublinha com o ar grave da autoridade paterna, quando recebe alguma estrela no auditório, que seu sucesso se deve à perseverança, à disciplina, à obstinação, sempre aliadas a uma sólida retaguarda familiar?
Foi assim, no último domingo, quando, logo depois de exibir o "Festival da Buzanfa", invadiu o sítio da apresentadora Angélica para revelar ao país uma família feliz, um ambiente saudável, harmônico, quase um conto de fadas.
Este parece ser o ponto: da apologia da sacanagem à exaltação dos valores da família a passagem é imediata, sem escalas, e não provoca qualquer reação adversa.
É por isso que Faustão pode ser ao mesmo tempo politicamente incorreto e carola, permissivo e conservador, escrachado e "pai de família", sempre contando com a aceitação bovina do público. Mas isso não é mesmo a cara do Brasil?

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