São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 1996 |
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Recordações da fábrica de cimento portland
MARILENE FELINTO
Acontece que quando eu nasci, meu pai era operário de uma fábrica de cimento dos Ermírio de Moraes, no município de Paulista, em Pernambuco. Nasci na vila que os Ermírio de Moraes destinavam aos operários, bem perto da fábrica, numa das pequenas casas de fachada colorida. Tempos depois, quando me disseram que nasci na propriedade de um dos homens mais ricos do mundo, guardei esse detalhe da minha história como quem guarda um dente de leite da infância, olha para ele anos depois e não tem o que fazer da relíquia inútil. No teatro, noite fria em São Paulo, um amigo também empresário me pedia, entre piadas, para esquecer esse traço óbvio, muito "Janete Clair", da minha biografia. E alertava, também entre piadas, para o fato de que o sentimento antiempresarial típico de nós, brasileiros, fosse interferir no julgamento do espetáculo. A peça é mais fraca do que imaginei. O texto, panfletário e moralista, não resiste a crítica, tão rasos são os conflitos, tão superficiais os personagens -na verdade tipos de comédia popular, como observou o crítico da Folha, Nelson de Sá. Trata-se da história de um empresário idealista, que pretende demonstrar que, apesar de brasileiro, é honesto. Um empresário que quer, como diz o autor no programa da peça,"(...) reafirmar perante todos a minha infinita fé neste grande Brasil". A mim, só me interessava verificar -já como puro exercício de ficção- como é que se sentia a filha do operário assistindo à peça do milionário dono da fábrica e da casa onde ela nasceu. Minha posição era confortável: eu, a filha do operário, podia hoje, com dentes fortes e definitivos, sentar-me na poltrona daquele teatro e julgar o patrão milionário. Assisti à peça com a cabeça enevoada pela mesma poeira cinza que subia dia e noite, em rolos grossos, pelas chaminés de concreto da fábrica de cimento. Estrondavam os fornos e os moinhos. Muitos parentes meus adoeceram engolindo aquela fuligem que poluía de pó as folhas das árvores e a água mansa do rio Cuieiras. Eu, a filha do operário, era hoje, passadas mais de três décadas, "colega" de trabalho -embora nunca o tenha visto pessoalmente- do ex-patrão do meu pai, já que escrevemos para o mesmo jornal. Assisti à peça sufocando uma vontade de gargalhar dessa ponte que naquele momento parecia extinguir o abismo entre milionário e operário. Quase levantei a mão no meio da platéia boba, para anunciar aquela pequena tragicomédia, o novelão da minha vida real: aqui, eu, a filha do operário, a realização do honesto sonho empresarial brasileiro! Desce o pano. E-mail mfelinto@uol.com.br Texto Anterior: Familiares de São Paulo desconheciam o acidente Próximo Texto: Brasileiros com Aids receberão remédios de graça por 6 meses Índice |
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