São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 1996
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Cesar Maia ergue no Rio um pênis autoritário

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estou diante da coluna de Cesar Maia e me pergunto: "Por quê?" Por que construir um obelisco de plástico com uma lâmpada em cima, um obelisco amparado por uma passarela que vai unir nada à nada, no centro do querido Bar 20, onde outrora os bondes davam a volta?
Por que essa estaca no coração do Rio?
Moradores de Londrina, Porto Alegre, São Paulo, Florianópolis, vocês não têm idéia do que é o "pirocão" do Cesar Maia.
Ali irão se espatifar ônibus e táxis, pois o "pirocão" é bem no meio da rua. E eu pensei: "Como ousam fazer esse pau-de-sebo autoritário? Será que ninguém vai fazer nada?
Será que os moradores dos prédios em volta não vão processar a prefeitura? Será que esse monumento ao "nada" vai ser o símbolo da passividade civil dos cariocas?
Tudo isso eu pensei, diante do "pirocão". É verdade que eu já estava me acostumando à feiúra da reurbanização do Rio: os tijolinhos vermelhos de barro que pipocam sob nossos pés na calçada, os túmulos de granito e chumbo da av. Princesa Isabel ladeados de postes-garfos de US$ 10 mil cada, o absurdo da praça José de Alencar.
Até gostava dos postes dos cruzamentos, que tombam para trás, formando uma floração de tremores; os postes verdes desmaiando nas esquinas e os postes bêbedos vomitando para a frente.
Eu racionalizava: "Esse Casé é um pândego. Resolveu imortalizar os bêbedos do Antonio's, onde tomamos tantos porres".
Pensei em tantos que já se foram, ouvi as gargalhadas de Estelita, de Hugo Bide, de Guerreirinho, do Marat, pensei no inefável Roniquito, lembrei-me de mim mesmo, vomitando nas esquinas do amor e do medo. E meus mortos flutuavam entre os postes líricos.
Mas, aí, eu vi o "pirocão"! Deparei com aquela coluna de Trajano pálida e inútil. Era demais! Mas ainda tentei ser bom e pensei: "Deve haver uma razão para este cacete de plástico. Maia e Casé devem ter algo em mente, para o aperfeiçoamento da consciência popular..."
Primeiro, achei que Cesar quis estimular ou homenagear a pulsão sexual do carioca. Aquilo talvez fosse um monumento ao "bofe desconhecido", uma estátua ao Ricardão ou ao famoso Perneta, conhecido como "jegue do posto 9". Ou ao grande Nicanor também celebrado como o "Tripé da Montenegro".
E pensei: "Já que não tinham dinheiro para botar um Picasso, puseram um Picaço".
Mas, não. Nem Cesar nem Casé fariam obra tão chula. O sentido é outro. A finalidade do "pirocão" seria estética mesmo.
Vejamos. Como seria um absurdo colocar no meio da rua até mesmo um Calder, a finalidade do "pirocão" talvez fosse um manifesto transgressivo: diante do "nada" pós-moderno, seria uma autocrítica de fim de milênio, um monumento à falta de talento.
Como se o "pirocão" dissesse: "Vejam, a arte morreu; belo é tudo o que eu não sou! Pensem nas colunas gregas, pensem nas acrópoles, pensem em Veneza!"
Seria uma homenagem paródica à beleza, por exclusão: "Não me olhem, amem o belo!" Assim, olhando o Picaço, lembraríamos de Bernini, Brunelleschi, Fidias...
O "pirocão" estaria ali justamente porque "não" podia estar ali, o pau do Cesar (ou do Casé?) nos instruiria sobre o mal do mundo.
Casé pensava como o professor Manfredo Tafuri, que fala da arquitetura pós-moderna como a impossibilidade da esperança, como um monumento antiutópico. Um obelisco metafísico, feito o monólito do "2001", que nos levasse a mais reflexão?
Depois, armei outra hipótese: a coluna de Cesar e Casé teria a mesma função dos monumentos ao deus Priapo na Antiguidade. Imensas pirocas floresceram antes de Cristo, pela Grécia, Roma, Egito. Pediam fertilidade, chuvas, animo. O grande obelisco priápico estimularia o Rio à luta, ao amor, à construção.
Talvez os bons Cesar e Casé estivessem pensando na tradicional brochura social carioca e levantassem o "pirocão" para nos estimular a criar, crescer, subir, com "a seixa do porvir!"
Minha cabeça não parava e achei uma explicação política. Claro! Um obelisco no meio da Visconde de Pirajá talvez fosse um símbolo das "idéias fora do lugar" da cultura brasileira, um despropósito que nos levasse a refletir sobre nossa dependência estética colonial, escravos que somos de qualquer coisa que se faça em Milão ou Nova York.
Por paródia, a coluna de Cesar seria contra o mundo globalizado... O Picaço seria um monumento antiimperialista!
Na mesma hora, pensei em Brecht, no efeito V ("verfremdung"), o efeito de "estranhar as aparências".
Ou, como queria também Vitor Shkolovsky, o formalista russo, o Picaço provocaria no povo o efeito de "ostranenie" ("estranhamento"), dando-nos a consciência das contradições sociais da cidade.
Mas, logo depois, achei ridículo querer aumentar a "estranheza" do Rio, cidade da lira do delírio.
Pensei ainda na piada carioca, uma estátua ao nosso humor: uma "caralheta", um "passaralho" talvez... Pensei em tantas coisas... Mas nada me convencia.
Até que fui tomar um café no botequim ali do Bar 20, pensando nos bondes. Um crioulinho de porre gritou, então, apontando o obelisco: "Alguém ali tem pau pequeno!..."
Foi a luz! Claro! Ali estava a resposta. O problema era sexual! Olhando melhor o largo, vi que os dois anteparos da "passarela do nada" eram como testículos suportando o grande pênis encimado por uma lâmpada.
Sim, um pênis iluminado, um pênis pensante, um pênis-maia, a superpiça, um totem de chapeleta faiscante, tão inesquecível como o pau-bandeira de Brasília, onde Sergio Bernardes ergue seu mastro competitivo com Niemeyer!
Sim, claro, aquilo era o pênis-imaginário do prefeito que inventou a tática política do inferno como marketing. A política do alívio!
Depois das obras infernais, o êxtase viria como vem o alívio aos estuprados. Como em Kafka, depois que a tortura acaba, vem a gratidão...
Todas as obras de Cesar tinham essa mensagem. Claro! O Picaço também era um "factóide" que dizia: "Falem mal, mas falem de Cesar..."
Só espero que façam uma ação popular contra o obelisco. Ou que o próximo prefeito castre o pau de Cesar no dia da posse, sob os aplausos da multidão. Cariocas, uni-vos!

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