São Paulo, terça-feira, 16 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Nosferato' recupera o 'filme inventado'

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

A primeira cena de "Nosferato no Brasil", uma mão que corta um círculo para revelar o sangue, simboliza algo que o filme do diretor carioca Ivan Cardoso, realizado em 1971, se tornou nos 25 anos seguintes a sua realização: uma lenda, um segredo e uma afronta.
"O emblema de uma geração que ia à praia", nas palavras do diretor Rogério Sganzerla, "Nosferato" retornará agora de seu ineditismo- o filme nunca entrou em circuito comercial no Brasil mas virou um cult no mercado americano de vídeo no final do ano passado- em mais um projeto de "pura experimentação" de Cardoso.
O filme "À Meia Luz com Glauber na Zona Proibida" (leia texto abaixo), uma colagem de 20 minutos (ainda em fase de montagem) sobre a obra de Glauber Rocha e José Mojica Marins, trará cenas do estranho Nosferato brasileiro, sempre em ação pelas areias de Copacabana dos dias ensolarados.
A intenção de Cardoso é explícita: provar que tanto Glauber quanto ele próprio sofreram sempre de um vertiginoso fascínio pela obra do Zé do Caixão. Logo, uma atração pelo cinema que fugia da estética bem-comportada ou do engajamento automático, sem reflexão.
"O filme sobre o Glauber é uma homenagem ao cinema experimental. Por que a cultura brasileira tem tanto medo de experimentar?", indaga Ivan Cardoso.
"Um cinema medíocre como o nosso tem que experimentar. É uma loucura. Se os Barreto produzissem o Zé do Caixão, ganhariam quatro Oscar. Roger Corman nunca produziu filmes tão caros como os que são feitos hoje aqui", diz.
Cardoso, no Rio de Janeiro do final dos anos 60 e início dos 70, era "o cineasta de 8 milímetros".
Contra as práticas e idéias do cinema novo, aos 19 anos pregava a estética do "underground" de Andy Warhol, sempre aliada aos avanços de uma geração que não era "esquerdofrênica": "Foi depois de 'O Bandido da Luz Vermelha' que resolvi fazer cinema".
Produzia, então, com filmes cedidos pela Kodak e uma câmera Super-8, aliados ao desejo de pregar a transgressão.
Tropical
"Eu vi o filme na época. A minha impressão é a de um filme que antecipa a questão da produção da imagem experimental. É um filme na contramão, um pouco como a última fase de Orson Welles. Tratar a imagem ordinária sem preconceito", diz o cineasta Julio Bressane.
Uma contramão que poderia significar, de forma prática, um conhecimento pouco profundo das técnicas de filmagem, substituídas pela invenção.
"Nosso Nosferato é o único vampiro que tomava água de coco e ataca as menininhas nas praias do Rio. Nós não tínhamos lâmpadas. Nem eu saberia como iluminar", lembra Ivan Cardoso, um cineasta conhecido pelo "terrir" de "O Segredo da Múmia" e "As Sete Vampiras", dois de seus trabalhos mais conhecidos.
O poeta e amigo Torquato Neto, já um pouco distante dos companheiros da tropicália, encarnava o vampiro (o elenco trazia ainda Scarlet Moon e Daniel Más), o que ajudou a construir a lenda sobre o filme. No lugar da escuridão obrigatória, um verso concretista oferecido aos espectadores como álibi: "Onde se vê dia, veja-se noite".
Mas, de todo modo, os espectadores foram poucos. O filme foi exibido na casa de amigos, em pequenos círculos ou auditórios. Suas imagens voltam agora em "À Meia Luz com Glauber na Zona Proibida", que, dentro das infelizes condições de distribuição de Nosferato, não tem ainda data e lugar para exibição. O underground e a invenção estão ainda em um mesmo lugar.

Texto Anterior: Os desfiles do dia
Próximo Texto: Novo projeto recupera o Glauber "trash"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.