São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O inferno são os outros...

ROBERTO CAMPOS

Há aspectos saudáveis na raivosa controvérsia gerada pela CPMF. O primeiro é tornar claro ao governo que se esgotou a tolerância da sociedade em relação à "extração fiscal". (O vocábulo "extração" é melhor que "carga fiscal", porque abrange o imposto inflacionário, a falta de contrapartida de serviços e as deficiências da infra-estrutura, que são impostos disfarçados). Daqui por diante, tudo que se pode fazer é simplificar a estrutura tributária e melhorar a tecnologia de arrecadação. O segundo, é dramatizar a falência do sistema de saúde, eivado de desperdício e corrupção.
O SUS tem de ser repensado. É uma tentativa de descentralização "dentro do governo" -da União para os Estados e municípios. O despreparo destes últimos dificultou sua operacionalização. É tempo de explorarmos soluções complementares -ou seja, a descentralização "para fora".
Uma fórmula imaginosa é a do PAS, de Paulo Maluf: é uma descentralização "para fora" do governo, por meio de cooperativas de médicos (com cadastramento da população pobre não coberta por planos de saúde) e fiscalização mais direta pelos usuários. Outra é a delegação de serviços de saúde a empresas privadas. Hoje só as grandes empresas podem fazê-lo, enfrentando um duplo encargo: contribuem pesadamente para o INSS, que parou de transferir recursos para a saúde, e têm de financiar planos privados. Se houvesse um desconto na contribuição previdenciária, também as pequenas e médias empresas se interessariam pela delegação de serviços de saúde, desonerando a rede pública. E fa-lo-iam mais economicamente que a burocracia estatal.
A compreensível revolta contra a "adicionalidade" da CPMF (mais um imposto) tem resultado em críticas exageradas à sua "funcionalidade". Entretanto, sua metodologia é mais eficiente que a dos outros inquilinos do nosso manicômio fiscal. Os defeitos atribuídos à CPMF não lhe são peculiares. Critica-se-lhe a cumulatividade, isto é, a incidência em cascata; mas isso não é pecado original, pois a Cofins, o PIS-Pasep, o ISS e o IOC padecem de igual defeito, sendo que este último afeta a taxa de juros e todos oneram as exportações. E com a desvantagem de exigirem três burocracias: a do contribuinte, a do exator e, não-raro, a do Judiciário.
A CPMF é cobrada eletronicamente nas transações bancárias, sendo também praticamente insonegável e atingindo a economia informal. É, assim, menos iníqua que outros impostos, pois a suprema iniquidade é a sonegação impune. Muito mais danos é a Cofins. Incide em cascata sobre o faturamento; a alíquota é alta (2%); não alcança a economia informal; é amplamente sonegada (prejudicando a competitividade dos adimplentes); e é enorme a complicação burocrática.
Isso não significa que a CPMF seja desejável. O desejável seria preservar-se a concepção teórica do imposto sobre transações financeiras como instrumento de simplificação do sistema. Na fórmula ideal, do professor Marcos Cintra, constituiria o único imposto de fins arrecadatórios. Na fórmula mais eclética, do deputado Luiz Roberto Ponte, que chegou a ser aprovada em Comissão Especial da Câmara, o imposto sobre transações financeiras (com alíquota máxima de 0,4% sobre débitos) substituiria apenas os quatro encargos da área social: Cofins, PIS-Pasep, contribuição social sobre o lucro e contribuição do empregador para o INSS. Essa simplificação já seria substancial.
Nossa política fazendária se tem destacado por grande voracidade fiscal, carência de imaginação criadora, despreocupação simplificadora (autodefesa do fisco que prospera com as multas) e descontinuidade administrativa. Curiosamente, o trabalho mais abrangente sobre reforma fiscal, com exame de alternativas e propostas concretas de completa reformulação do sistema, foi ignorada pelos bonzos do Tesouro. Trata-se do relatório da Comissão Executiva de Reforma Fiscal, coordenada pelo dr. Ary Oswaldo, e apresentado ao governo Collor em julho de 1992.
Depois disso já vivemos duas minirreformas do Imposto de Renda, a implantação do IPMF, a criação do Fundo de Seguridade Social e, agora, as propostas de FHC de emendas constitucionais referentes ao ICMS e à Previdência Social. São todas peças díspares e episódicas, sem organicidade e visão macroeconômica. Agora que o governo, assustado com o impacto popular negativo da CPMF, pede alternativas fiscais mais duradouras e aceitáveis, é tempo de reexaminarmos as propostas da Comissão Executiva da Reforma Fiscal e do deputado Luiz Roberto Ponte.
E uma vez que estamos esculhambando impostos, vamos escandalizar ainda mais os "caipiras". O Imposto de Renda, venerado como instrumento de justiça social, é um imposto burro; e tanto mais burro quanto mais progressivo.
Para começo de conversa, a justiça social se faz do lado da despesa, que deve ser direcionada para privilegiar os mais pobres. Do lado da receita, só interessam três critérios: arrecadação barata, insonegabilidade e preservação dos incentivos ao esforço produtivo, nenhum dos quais é satisfeito pelo IR. Sua arrecadação é cara, e a engenharia fiscal de evasão torna-se às vezes mais rendosa que o esforço produtivo.
Quanto mais diligente, criativo ou sortudo for o cidadão, mais será ele punido pela progressividade; menor, consequentemente, sua devoção produtiva. No caso limite, o cidadão emigra para paraísos fiscais.
O IR clássico faz parte da sabedoria convencional, mas isso não destrói sua ilogicidade. Com efeito, pode-se cogitar três bases para tributar a renda: 1) segundo os benefícios recebidos, coisa impraticável porque os pobres teriam de pagar mais que os ricos; 2) segundo o consumo das pessoas, ou seja, aquilo que "extraem" da comunidade; a consequência lógica seria não se tributar a renda produzida, e sim a consumida; 3) segundo a sua capacidade produtiva. Essa a fórmula convencional, na qual as pessoas declaram ao Estado a renda que recebem, a fim de serem devidamente garfados. Ora, a renda é o valor que a sociedade dá aos bens e serviços que lhe são prestados. Quanto mais progressivo for o imposto, maior o confisco do resultado do esforço individual. Dizem os tecnocratas que isso é justo porque, à medida em que sobe a renda, diminui sua "utilidade marginal" para o indivíduo. Mas o julgamento da utilidade é eminentemente subjetivo, e o indivíduo pode preferir trabalhar menos para gozar a vida.
Por mais estranho que pareça, o Imposto Único Sobre Transações Financeiras seria socialmente mais justo que o IR. Teria uma progressividade "espontânea": os ricos pagariam mais, porque fazem mais transações financeiras ou compram produtos mais sofisticados, com cadeia longa de produção. No IR, se a alíquota for de 30%, temos que trabalhar 109,5 dias para o governo; se atingir 50%, é melhor mudar para o Caribe...
Voltemos à CPMF. O argumento existencial usado pelo dr. Jatene na Câmara foi a pergunta simples: qual a alternativa? Há hospitais públicos em desintegração, convênios do SUS em vias de cancelamento, atrasos de pagamento, doentes nas filas... Inútil dizer a estes que esperem um pouco mais, até que a esculhambação do SUS seja corrigida e se faça sadia reforma fiscal. A CPMF é apenas uma bóia lançada aos náufragos. Tem-se de providenciar um transatlântico para salvá-los. Mas esse transatlântico não pode ser o atual sistema fiscal e previdenciário, que se parece com um Titanic, a poucos metros do iceberg.
Diga-se em favor da CPFM que, pelo menos, não se presta a achaques dos fiscais, classe parasitária que se tornará supérflua na era da tributação eletrônica. O diabo são os outros impostos. "L'enfer... c'est les autres", como filosofava Jean Paul Sartre.

Texto Anterior: Coronel vermelho
Próximo Texto: Com todas as letras
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.