São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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O leão na sala de aula

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Nas suas aulas, revelou o que significa o diálogo entre o pensamento e a sensibilidade do texto. Mostrou como, nas mãos do leitor capaz, surgem mundos ignorados, que parecem brotar materialmente das próprias linhas (...). Quantas vezes, em lições sucessivas, recomeçou a leitura de certo poema, corrigindo-se, superando a anterior, embora tivesse sido tão límpida e insuperável, com outra nova, mais genuína e completa". Estas palavras de Antonio Candido dão a medida da alta voltagem do professor Ungaretti.
O ensaísta Ruy Coelho, assim como Candido, não foi seu aluno regular mas, na condição de ouvinte, ficou fascinado pela figura leonina daquele professor que "dava aula aos rugidos, ouviam-se os gritos pelo corredor (...). Foi o único homem cuja presença me fez sentir que estava diante de um gênio". Criou-se uma mitologia em torno daquele homem barroco que deformava ao extremo a própria fala, mas que sabia articular elementos históricos dos mais profundos, indo da rara erudição à poderosa síntese dos conceitos.
Professor dentro e fora da sala de aula, orientou o famoso ensaio de Ruy Coelho "Marcel Proust e a Nossa Época", publicado no número inaugural de "Clima". Recomendou ao mesmo a leitura de Lautréamont e Saint-John Perse.
Outra de suas qualidades, segundo Antonio Candido, era a crítica de artes plásticas: "Lembro, por exemplo, dos encontros na notável exposição de pintura francesa, de Ingres aos nossos dias, que houve aqui em 1940, num dos salões da Galeria Itá, na rua Barão de Itapetininga. Todos os dias a gente ia lá (...). Ungaretti comentava admiravelmente bem as artes plásticas, como grande conhecedor, e era formidável ouvi-lo falar dos quadros de Renoir, salientando a sua carga de forte sensualidade transformada em forma e cor". O crítico agudo surgia também nos comentários sobre os Picassos e De Chiricos da casa de Oswald de Andrade, ou ainda na insistente reprovação que, segundo Alfredo Bosi, fazia a certa estátua tosca e moderna presente na Igreja dos Dominicanos, nas Perdizes: "Precisam dinamitar esta estátua".
No âmbito da instituição, Ungaretti deixou como discípulo e assistente (e um de seus tradutores) o professor Italo Betarello: "Ele me tirou daquela atmosfera de D'Annunzio e Manzoni e me deu o primeiro grande deslumbramento de vida". De acordo com as recordações de Betarello, "a sua voz forte e aberta saía das aulas para continuar nos corredores, nos bares onde se ia tomar café, os alunos iam junto com ele, até nos bondes, para terminar na sua casa".
Foi Betarello quem emprestou a Antonio Candido exemplares de "L'Allegria" e "Sentimento del Tempo", copiados integralmente à máquina e que sempre foram os prediletos do autor de "Formação da Literatura Brasileira".
Segundo o ensaísta e professor Alfredo Bosi, Ungaretti transformou-se num culto familiar transmitido por Betarello. Apesar de não ter sido aluno do poeta, Bosi o entrevistou e escreveu sobre sua obra. Mas a principal contribuição de Ungaretti como professor foi introduzir a paixão por Dante, Vico e Leopardi. O curso de literatura italiana na USP, por intermédio de Betarello, conservou e prolongou esta tradição, que encontrou em Bosi seu legítimo herdeiro.
Por um destes "acasos objetivos", a notícia da morte de Ungaretti chegou na USP na manhã em que Bosi ia dar a aula de seu concurso de livre-docência, cujo ponto fora sorteado na véspera: "A Poesia de Ungaretti".

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