São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Descobertas no exílio brasileiro

LUCIA WATAGHIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sabe-se que a produção poética de Ungaretti nos anos brasileiros (1937-1942) foi praticamente nula. No Brasil, Ungaretti suspendeu o projeto de composição da "Terra Promessa", cujos primeiros quatro quartetos tinham sido compostos em 1935. "Em todo o período passado no Brasil", escreve Ungaretti, "não consegui ir além destes poucos versos".
Ungaretti projetou um livro sobre o Brasil, outro sobre o Aleijadinho, que nunca foram escritos. Os traços mais marcantes da experiência brasileira (e, particularmente, da tragédia pessoal de Ungaretti, que perdeu o filho Antonietto, de nove anos, em 1939) encontram-se em duas obras que não estavam nos planos do poeta: "Il Dolore" e "Un Grido e Paesaggi", publicadas respectivamente em 1947 e 1952. A respeito de "Il Dolore", Ungaretti se recusa a fazer qualquer comentário, alegando um pudor, muito natural, que o impediria de falar de sentimentos íntimos, ligados à morte do filho.
Mas afirma várias vezes que "Il Dolore" interrompeu de fato o curso de sua poesia, que devia prosseguir diretamente do "Sentimento del Tempo" (1932) e "La Terra Promessa", que será concluída somente em 1949. E afirma, a propósito de "Il Dolore": "Havia uma tragédia no mundo, havia também uma tragédia minha, que me atingia em meus afetos particulares, e naturalmente as pesquisas de pura poesia deviam ceder lugar às angústias, aos tormentos daqueles anos".
Uma afirmação que revela a complexidade de sua posição acerca da relação entre vida pessoal e poesia. Essa relação fora definida sem ambiguidade na "Allegria", poesia nascida nas trincheiras das montanhas do Carso, durante a Primeira Guerra, no confronto com a morte, mas evidentemente agora é diferente: é diferente a tragédia, a idade de Ungaretti (que estava com 51 anos quando o filho morreu), e são diferentes as circunstâncias. A participação de Ungaretti na guerra fora parte do processo de reconstrução da italianidade do poeta, enquanto sua presença no Brasil é, pelo contrário, ocasional, originada pelo convite a ocupar a cadeira de língua e literatura italiana na USP.
Nunca é demais insistir sobre a posição de eterno "exilado" de Ungaretti como determinante de sua poesia. Leone Piccioni, seu principal biógrafo, cita palavras esclarecedoras do poeta a propósito de sua condição de exilado, que é, ao mesmo tempo, um estado de tremenda solidão e fonte de sua poesia: "Sentia-me como que isolado de minha realidade verdadeira. Este estado de laceração irredutível, que nunca soube remediar, é, graças a Deus, a fonte do meu canto, a determinante do meu estado de graça. É um estado de graça que implica cruelmente a impossibilidade de pertencer a qualquer lugar, a qualquer tradição (...) nunca houve ligação no mundo (...) que pudesse fazer de mim não mais um homem só, um homem separado, um homem avulso, um homem expulso".
É no contexto de um estado de exílio permanente que pode ser interpretado também o período brasileiro de Ungaretti. Este vem interromper o pleno relacionamento do poeta com a Itália, pátria predileta há pouco reencontrada: interrompe, de fato, a viagem simbólica do exilado em direção à "Terra Prometida". Esta poderia servir como chave de leitura do relacionamento contraditório do poeta com o Brasil. A relação conflitual é especialmente revelada em um texto de 1936, que Ungaretti define como "velhas laudas que resumem uma (sua) conversação com escritores sul-americanos", e que será publicado novamente em 1943, como parte inicial do ensaio "Imagens de Leopardi e Nossas".
São duas páginas de observações sobre "línguas desarraigadas do curso da própria história para outra e nova história", nas quais declara: "A expressão (no Brasil) sofre em si desequilíbrios atrozes como padece o trigo, ou a videira, ou a oliveira quando tem de enraizar-se em meio a sucos e a um ar não seus. Muitas vezes a árvore cresce estéril, ou a massa não tem vigor, ou a uva esmagada não se torna bom vinho, mas lama e mau cheiro".
Essas observações correspondem à ideologia aristocrática, conservadora e eurocêntrica que está na base da idéia ungarettiana de memória como valor imprescindível da poesia: a tradição, a identidade histórica da palavra, que nasce, se desenvolve e se aperfeiçoa dentro e por meio da literatura. Ungaretti busca a vida inteira a reconstrução da memória e da tradição, o canto de seus antepassados, "os ritmos pelos quais a música da alma era persuasiva aos ouvidos dos pais". O italiano, escreve o poeta, é uma língua de poesia, porque é uma língua de memória.
A reconciliação com o "ser (brasileiro), separado de suas antigas raízes e ainda sangrando pela mutilação", acontece finalmente com o reconhecimento de uma tradição de poesia brasileira, da qual Ungaretti pretende oferecer exemplos de várias épocas, com suas traduções. Trata-se de traduções de José de Anchieta, Tomás Antonio Gonzaga, Gonçalves Dias, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Vinicius de Moraes, de três cantos de povos indígenas e de um canto popular sertanejo, com comentários e notas do poeta.
Essas traduções serão publicadas, uma primeira vez, nos "Quaderni Internazionali di Poesia 3 e 4", em 1946, e republicadas em 1961 na última seção, dedicada ao Brasil, de "Il Deserto e Dopo", prosas de viagem e ensaios. São cerca de 50 páginas, com o significativo título "Pau Brasil", que testemunham o interesse de Ungaretti pela poesia brasileira, e particularmente modernista. O critério da escolha dos textos é fazer com que o leitor possa "encontrar a linha de uma tradição que está se formando". Ao lado das traduções de poetas representativos da tradição brasileira, Ungaretti oferece traduções de poesia popular, indígena e sertaneja. Seu interesse pelos cantos populares é antigo: em outras seções de "Il Deserto e Dopo", encontram-se versões de cantos populares árabes e citações de cantos dos povos da Córsega, da Puglia e de Nápoles.
Mas é especialmente frente à beleza dos cantos populares brasileiros que traduz que Ungaretti manifesta sua admiração e comenta: "A poesia, quando existe, é poesia, e não se pode distinguir a poesia popular da poesia culta, a não ser pelos modos, pelo estilo". O encontro de um poeta refinado como Ungaretti com a poesia popular brasileira é um encontro feliz: em um ponto da tradição extremamente distante do seu, Ungaretti encontra alta poesia.

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