São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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"Te amo muito, de maneira desmedida"

DA REDAÇÃO

Leia a seguir uma carta inédita de Giuseppe Ungaretti a Bruna Bianco, cuja data e local de envio são deduzidos do envelope: Roma, 27 de outubro de 1966.
*
Alma minha,
retomei um velho hábito, da época -já se passaram muitos anos, tínhamos por casa um quarto só, e eu já gozava de fama internacional e era já considerado, na Itália, o primeiro no meu campo- em que, para trabalhar tranquilo, vinha ao café. Escrevo-te de um café. Quero a todo custo parecer a mim mesmo dia (1) jovem. Uma loucura a mais, ou a menos, desde que te vi, não se pode mais contá-las. Retomei, como faço a cada momento, as tuas fotografias antes de sair e, após tê-las olhado longamente, recoloquei-as em seu lugar secreto, num cofrinho fechado.
Os olhos, olhei-te nos olhos. Te amo muito, te amo de maneira desmedida.
Lembras quando nos encontramos pela primeira vez? Acompanhei-te à saída e sem querer meu braço apertou tua cintura, que senti erguer-se àquele meu contato como um ramalhete de primavera. Aceitaste que eu te amasse, que minha loucura crescesse dia após dia, que me tornasse esta pessoa que não pode mais fazer nada sem te ter presente nos olhos e no coração, e em todo o meu ser, alma e sangue, sempre sempre sempre. Não Te sentes chamada continuamente, minh'alma, por este exilado, fascinado cada vez mais pelo desejo de aportar à Itaca longínqua, extremamente longínqua? Tu és minha soberana. Não sou monarquista, nunca fui. Quando vou a Genebra, sempre vou cumprimentar Maria-José, e digo-lhe: "Majestade, sabe que tenho por sua pessoa muito afeto devotado, mas não sou monarquista, nunca fui". Ela me olha com seus olhos doentes e me sorri como se eu mentisse. Não, é verdade. Sou monarquista só para uma pessoa, para Ti, tu és minha soberana, e gostaria de fazer para Ti qualquer coisa que possa Te agradar, e mesmo morrer por ti, se isso pudesse fazer-te feliz, e pelo contrário sei que te faria infeliz. Minha vida para mim já não vale mais nada, só vale este meu amor por ti, impaciente, tirânico para mim, obsessivo para mim, terrível e muito doce, alma minha.
Meus planos para o futuro próximo: da metade até o fim de novembro, Paris, começo de dezembro, Florença; de 12 a 17 de dezembro, Moscou (sou o presidente da Comunidade Européia dos Escritores e deveria representá-la no Congresso dos Escritores Soviéticos). Ver o verdadeiro inverno, compreender melhor os grandes escritores russos, seria uma experiência extraordinária. Esperamos poder fazê-la; em janeiro, convidado por aquele governo, visitarei Israel; na segunda metade de janeiro, ou no começo de fevereiro, irei a Munique, hóspede daquela Academia de Belas Artes da qual sou sócio (Goethe também foi); em julho há manifestações de poesia em Londres, nas quais devo intervir junto aos principais poetas de hoje etc. etc. etc.
Mas há uma notícia melhor: um amigo escritor me empresta sua casa em Capri; para onde poderei ir, sem despesas, descansar.
Tu me dizes que virás a Paris em 68. Estarei com 80 anos. Serei festejado. (Estranho costume, festejam as pessoas quando estão prestes a morrer). Sairão naquela ocasião a reedição da tradução francesa dos meus poemas e a edição da tradução dos meus ensaios. Como ficarei feliz de passear em Paris conTigo, na cidade que conheço melhor e que é a mais surpreendente de todas. Estarás já na Europa em fevereiro, não é? Mas antes nos encontraremos em São Paulo: não vejo a hora. Quero rever-te, quero rever-te. Só irei por Ti. Tenho tantas coisas para te dizer. Tens tantas coisas para me dizer.
Teu poema do sangue é maravilhoso. Mas em tuas cartas há mil vezes frases que são poesia perfeita. Não te inquietes com a linguagem. Teremos ocasião de falar disso novamente.
Espero para os 80 anos publicar um livrinho anônimo, com o título: "O Livro de um Amor Secreto". Conterá coisas tuas e minhas. Pouquíssimas cópias, de luxo.
Posso beijar-te?
Ungá

Nota:
1. "olhe o lapso, que peça me prega" (nota de Ungaretti à margem da folha)

Tradução de Lucia Wataghin.

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