São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Não acabou em pizza

GILBERTO DIMENSTEIN

Uma pizza calabresa deu inesperada notoriedade a Jerry Willians, um desconhecido jovem de 25 anos que vivia na Califórnia, sem trabalhar ou estudar.
A pizza entrou na história por dois motivos, ambos surpreendentes. Primeiro, vai custar cerca de US$ 1 milhão aos americanos. Segundo, colocou Jerry na prisão perpétua.
Ao roubar a pizza de quatro garotos em 1994, ele cometeu seu terceiro crime -pela lei da Califórnia, o terceiro crime significa passar o resto dos dias na cadeia.
Como um prisioneiro custa US$ 2.000 mensais e ele deve ter ainda pelo menos 50 anos de vida, a fatia de pizza vai sair por pelo menos US$ 1 milhão.
Ao ser condenado a uma pena tão grave por um motivo tão banal, Jerry virou um dos símbolos de uma sombria tendência nos EUA, transformado num país de encarcerados: em nenhum lugar no mundo há tanta gente presa.
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Eles estão construindo apressadamente cadeias e já conseguiram do Congresso US$ 5 bilhões.
Superlotadas, as prisões recebem 100 mil novas pessoas por ano, compondo uma população de 1,3 milhão, o que tira dos contribuintes US$ 35 bilhões anuais; gastam seis vezes mais com prisioneiros do que o Brasil com as universidades federais.
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O caso da pizza não é isolado. Na guerra contra o crime, principal preocupação dos americanos, os políticos, a começar por Bill Clinton, endurecem as leis para manter o indivíduo mais tempo enjaulado.
Ganha adeptos por todo o país a novidade da Califórnia de punir com prisão perpétua quem não se regenera e comete o terceiro crime.
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Valores extraordinários como US$ 35 bilhões, pedaços de pizza que custam US$ 1 milhão ou gasto por preso de US$ 2.000 (70% do salário de uma professora primária) são números que não parecem impressionar a imensa maioria dos americanos.
Estão decididos a enjaular toda e qualquer ameaça, sem considerar uma simples pergunta: prender realmente funciona?
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Prisão deve ser o último recurso e apenas para aqueles que, de fato, representem risco físico à comunidade.
Contra as delinquências dos ricos -sonegação, estelionato, crimes contra o consumidor- o melhor remédio são multas tão pesadas que eles prefeririam, quem sabe, estar na cadeia.
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Inutilidade ficar prendendo consumidores e traficantes de drogas; aliás, não é só inútil. Prender viciado é desumano, pois ele deveria ser tratado como um doente.
Os norte-americanos colocam no xadrez 60 mil pessoas por ano por causa das drogas, e o consumo não baixa, enquanto se dissemina a violência infanto-juvenil.
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Se o consumo não baixa, a produção não cai. Estive na Colômbia, e especialistas em cartéis de narcotraficantes me relataram a rapidez com que, aniquilado um grupo, logo outro tomava conta.
Mais cedo ou mais tarde, vamos ver que legalizar as drogas é um mal menor.
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Em Cali, onde está um dos mais poderosos centros do narcotráfico, chega a ser cômica tamanha transparência; andava de carro e o motorista ia me apontando casas, prédios, lojas dos traficantes, transformados em pontos turísticos.
A família Rodríguez, dona da maior fatia do tráfico, tem como negócio legal para lavar dinheiro nada menos do que uma rede de drogarias.
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Experiências realizadas em cidades como Nova York, Amsterdã e Liverpool (Reino Unido) mostram que é mais barato e eficiente tratar o viciado em vez de prendê-lo.
Mantido sob controle, o viciado não cai no crime para comprar as drogas, reduzindo a violência, como se viu rapidamente na Holanda.
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Como os americanos, os brasileiros (com mais razão ainda) estão apavorados com o crime, e ninguém é irresponsável de sugerir o fim das prisões.
Mas prisões como estão, especialmente no Brasil, não recuperam, apenas estimulam o ressentimento, a rejeição. São um péssimo investimento social. O indivíduo sai pior do que entrou e vai descontar na sociedade.
Estamos, em essência, pagando para sermos ainda mais ameaçados, o que, no final, estimula a cultura do extermínio.
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O que reduz mesmo violência é um coquetel de ofensivas, baseadas nos direitos humanos e no fim da sensação de impunidade.
A começar do policiamento preventivo: as últimas estatísticas indicam que continua despencando a violência em Nova York; nos últimos três anos, menos 50% de homicídios. E tem a ver, essencialmente, com melhor policiamento.
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As boas experiências investiram em prisões que recuperam o delinquente, desarmamento, envolvimento das famílias, escolas, igreja, sindicato, meios de comunicação, distribuição de renda e emprego.
Fora disso, vão torrar dinheiro do contribuinte para "aperfeiçoar" bandido na cadeia.
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PS - Ouvi na Colômbia estudiosos advertirem que os narcotraficantes tenderiam a fixar raízes no Brasil. Eles necessitariam de um país com economia maior e sofisticação bancária para lavar o dinheiro, onde a polícia não fosse muito equipada para enfrentá-los.
A suspeita é compartilhada no governo americano.

E-mail GDimen@aol.com
Fax (001-212)873-1045

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