São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Poppovic recicla os escombros do feminismo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em seu período rosa-choque, quando parecia ser capaz de catalisar anseios que estavam além da sua própria bandeira, a moda feminista conquistou espaços inesperados na televisão.
Basta recordar as "lições de anatomia" da então sexóloga Marta Suplicy, que usava seu quadro no "TV Mulher" para explicar, com muito didatismo e sem eufemismos, onde se localizava o clitóris e quais eram as possibilidades revolucionárias daquele órgão.
Na mesma época, Regina Duarte comovia a todos mostrando a luta de "Malu Mulher" na tentativa de reconstruir sua vida sem fazer concessões à cultura machista. Tempos heróicos, dirão alguns.
O fato é que, visto em retrospectiva, esse feminismo televisivo teve a duração de uma gripe. Seu avanço estava ligado antes à percepção mercadológica de que o tema era inevitável do que a qualquer compromisso com o esclarecimento ao público.
O que se vê hoje na TV são escombros desse período. A bandeira da emancipação foi incorporada e diluída pelos programas que se destinam às mulheres. Tornou-se um ingrediente a mais de uma receita ultraconservadora, que ora insiste em confinar a mulher ao espaço doméstico, ora a transforma em agente da frivolidade com direito a voz em praça pública.
Dois exemplos servem de ilustração. No primeiro caso, o "Mulheres", da CNT/Gazeta. No segundo, o programa "Silvia Poppovic", da Bandeirantes.
Sobre o "Mulheres" não há muito o que falar. Astrologia, culinária, dicas de saúde, emagrecimento, sorteio de panelas e liquidificadores -sempre naquele gostoso clima de chá das cinco. Chegamos a ter inveja de quem é capaz de organizar seu mundo a partir dessas referências.
O caso de Silvia Poppovic é mais interessante. O programa é de debate e sua fórmula consiste em mesclar depoimentos pessoais com a palavra de especialistas. Nele, não é só a distinção entre público e privado que vai para o espaço, mas também as fronteiras entre o razoável e a aberração. Aliás, quanto pior o tema, tanto melhor.
"Meu chefe usa saias", "Viajei num disco voador", "Sou louca por um machão", "Casei com uma estrela pornô" são alguns dos temas já debatidos.
À arbitrariedade dos assuntos, corresponde a idéia de que a mulher de nossa época pode e deve palpitar sobre tudo com desembaraço, como se estivesse obrigada a extravasar seu ego após séculos de repressão. O resultado é uma espécie de zunido à beira da entropia, como se o objetivo fosse exatamente fazer barulho, preencher o vazio, criar a ilusão de que algo esteja realmente sendo discutido.
A apresentadora contribui nesse sentido. Vulcânica, intrépida, enfática, assertiva, ela vai rifando argumentos com a velocidade de quem seleciona legumes na feira. Interrompe um, repreende outro, elogia um terceiro. Seu segredo está em dizer trivialidades como quem anuncia verdades profundas num megafone.
Tudo funciona como se o silêncio, a dúvida e o intervalo necessários à reflexão tivessem de ser suprimidos a qualquer custo por uma espécie de ruído permanente, cujo efeito hipnótico deve confortar a espectadora que se reconhece nos casos que acompanha no vídeo.
O "divã eletrônico" de Silvia Poppovic não deve seu sucesso ao discernimento do público, mas sim à intuição básica de que isso se tornou algo totalmente supérfluo.
*
Há duas semanas, escrevendo sobre "O Rei do Gado", chamei o personagem interpretado por Carlos Vereza de "senador corrupto". Errei. Neste caso, parece que o senador é honesto.

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