São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Romance na tarde

MARCELO MANSFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de quase 60 anos de absoluto poder sobre as massas, o cinema se viu ameaçado com a chegada daquela coisa estranha inventada por um escocês desconhecido chamada televisão.
O rádio com imagem chegou devagarinho e aos poucos foi tirando todo mundo das enormes salas com decoração mourisca, colocando as pessoas no lugar de onde nunca deveriam ter saído: o aconchego de seus lares.
O teatro, o começo de tudo, pouco se importou: se o cinema já era inferior, imagine esse negócio, esse trambolho enfiado no meio da sala de estar...
No entanto, foi do teatro que vieram os primeiros sucessos, respeitosamente chamados de teleteatro. O cinema, arte popular, continuaria a ser chamado assim mesmo, cinema... só que "Cinema em Casa".
Hollywood, a eterna Meca, logo tomaria conhecimento do novo meio, e, como se diz, senão se pode vencer o inimigo, junte-se a ele.
As matinês se mudaram para a TV. E então todos viram Joan Crawford sofrer por causa da filha má em "Almas em Suplício", do mesmo jeito que a filha boa, Cristina, na vida real, sofreu pela mãe má, Joan Crawford, no escandaloso livro "Mommie Dearest".
Enquanto mamãezinha chorava, Fred Astaire e Ginger Rogers dançavam no cenário branco de "O Picolino", enquanto em outro canal, a mesma Ginger se apaixonava por Cornel Wilde em "Tinha que ser Você". Tarde da noite, Chopin declarava que não tocaria para "os carniceiros do czar" em "À Noite Sonhamos", estrelado por... Cornel Wilde.
Num país cuja população circula em carros importados sem saber ler direito, a dublagem era algo fundamental.
Dubladores mais ou menos famosos deixaram marcas: Rita Cleós, estrela de novelas da TV Tupi (uma das primeiras atrizes a aparecer tomando banho de banheira na tela, numa época que os homens não sabiam ainda interpretar sem camisa) estava em todas.
Marcia Cardeal, que comandava o "Zás Traz", uma espécie de programa infantil onde o público alvo era a criança e não os papais (parece absurdo, eu sei, mas nem toda apresentadora precisava se vestir como aqueles frangos de padaria que mostram tudo), dublava qualquer pessoa com menos de 16 anos.
Mas nada supera Ida Gomes dublando Bette Davis. Se você é cinéfilo e, como eu, acompanhou todos os filmes da antiga estrela na TV, concordará comigo que Bette Davis e Ida Gomes são a mesma pessoa.
"Tudo Isso e o Céu Também", "A Malvada" e muitos outros devolveram o prestígio da atriz perante o público brasileiro pela escolha perfeita de uma voz que condizia com a personalidade de seus personagens. E o melhor, é que Ida Gomes, como já foi visto em dezenas de trabalhos na TV, possui a mesma característica que imortalizou a mortal Baby Jane: Os cruéis olhos azuis, "the Bette Davis eyes".
Ida Gomes poderia interpretar maravilhosamente "A Estranha Passageira", assim como Bette Davis daria uma ótima "Irmã Cajazeira" em "O Bem Amado".
Quando Jonathan Harris, o inesquecível doutor Smith de "Perdidos no Espaço" conheceu Borges de Barros, que o dublava na versão brasileira, ficou atônito, e declarou que a voz do dublador tinha muito mais a ver com o personagem, do que sua própria voz. Ele não estava mentindo. A bronca, "Ora cale-se, sua lata de sardinha" dita insistentemente ao robô do seriado, se tornou um clássico.
O mesmo aconteceu com algumas frases ouvidas à exaustão como "versão brasileira AIC, São Paulo" ou "dublado nos estúdios da Odil Fono Brasil".

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