São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 1996
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Um mundo à espera de um cronista

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sapato não é bem sapato, nem vestido é bem vestido no mundo à espera de existência do MorumbiFashion -quer dizer, no mundo da moda que dá início hoje, em São Paulo, ao "calendário oficial" de lançamentos no país, quando desfilam as principais confecções.
MorumbiFashion... Para quem não sabe, Morumbi é um shopping center de São Paulo, e "fashion" é moda. Juntaram os dois nomes em um só para atribuir existência, solidez e marca ao evento. Nesse mundo em busca de substantivos, as palavras e as imagens carregam cada vez menos semelhança com as coisas que parecem descrever, como diria o sociólogo.
É um mundo à espera de um cronista, quer dizer, de um Proust, de um Tolstoi, de um Machado de Assis que encontrasse inspiração para transformar em material literário a futilidade, a frivolidade, a frescura e a falsidade desses salões por onde desfila certo tipo de gente "de alta estirpe" contemporânea.
Como não existem mais Tolstois, a coisa se esfarela na tentativa de existir -nada inspira, girando em torno de si mesmo, de nomes que não se fixam no universo da efemeridade e da falta de biografias.
Na última quinta-feira, quando do desfile e coquetel de abertura do MorumbiFashion, procurei, na capa e dentro do convite, alguma informação biográfica sobre o sapateiro inglês (ou melhor, o designer de sapatos) Patrick Cox. Não havia uma única palavra.
Acabei assistindo ao desfile da "coleção de verão" do homem sem saber nada sobre ele. Depois percebi que é desnecessário saber. Patrick Cox é Patrick Cox, um substantivo montado a partir do nada, uma marca a se fixar, um objeto a ser consumido.
No desfile metonímico de sua coleção, só apareciam coxas e pernas das modelos, exibindo os sapatos que não eram bem sapatos, uns tijolões coloridos, de matéria plástica interplanetária, irreal. Cox não precisa de biografia, da mesma maneira que suas modelos não precisaram de rosto.
Na verdade, o desfile de sapatos não foi bem um desfile de sapatos. No mundo das aparências, ou dos "looks" -em que tudo é programado para não durar mais do que uma estação do ano-, o que vale é o show que antecede o evento.
É de propósito que a espera é mais longa do que o desfile em si -que durou curtos 20 minutos. É preciso dar tempo para as pessoas chegarem, aparecerem, exibirem as peças do vestuário, os cumprimentos mecânicos. É preciso que Cristina não-sei-de-quê e Alexandre sei-lá-qual ganhem realidade e tenham fixadas suas marcas pelos flashes de máquinas fotográficas.
Mundo à espera de um cronista, quer dizer, eu é que fiquei achando que era preciso dar algum estofo ao vazio, alguma idéia de futuro à efemeridade das estações, para que a vida não se resuma ao angustiante desperdício de energia dos salões de moda da modernidade.
Engano. Ali, as palavras de ordem são mesmo modernidade e renovação. O auge do desfile de sapatos não foi o desfile de sapatos. Foi o breve discurso de abertura do "dr." Teles, um dos organizadores do MorumbiFashion. Ele disse:
"Quando vejo cem vestidos no armário da minha mulher, me pergunto por que ela precisa de tantos. Mas como sou um homem desenvolvedor (sic), um homem de sensibilidade, entendo que é importante estarmos sempre novos e renovando, porque isso é vida, energia, força. Moda é mais do que indústria, é estado de espírito."

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