São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 1996
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Português é língua de negro-preto, sim senhor

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Todos os homens nasceram escuros, e a pelo menos uns 150 milhões deles foi atribuído o destino de falar português, língua originária da península Ibérica branca, de antes de Cristo, habitada por iberos, celtas e fenícios.
Todos os homens nasceram pretos, e Nosso Senhor, ouvindo a queixa, "mandou que se fossem lavar num poço" -diz a lenda. Não adiantou de nada. Até o branco D. Pedro 1º assinava-se "seu negrinho", em bilhetes apaixonados para sua amante, a também branca marquesa de Santos.
Uma recente foto de jornal (de 18/07) estampava a cara negra dos falantes de português mundo afora. Era a foto oficial dos representantes da reunião inaugural da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), em Lisboa, de que fazem parte Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
Somada, a população de todos esses países perfaz um total de aproximadamente 200 milhões de falantes do português.
Considerando -cálculo subjetivo meu- que haja 50 milhões de brancos entre eles, conclui-se que a esmagadora maioria de negros, mulatos e miscigenados restantes é hoje a principal herdeira linguística do idioma lusitano.
O retrato no jornal destacava as caras brancas de Fernando Henrique Cardoso e do premiê português António Guterres. Todos os demais eram negros no encontro cujo objetivo podia até ser outro mas que não deixava de pairar no ar como uma pergunta: para que serve falar português no mundo?
Imaginei os portugueses olhando lá de cima e neste fim de século o destino de seu idioma de ex-navegantes e ex-colonizadores, a dinâmica da história que transformou o galeziano do condado de Portus Cale, território entre o Minho e o Douro, em fala de negros.
Em que pese a força política e econômica de Brasil e Portugal, a língua já não é lusitana há tempos, nem luso-brasileira apenas -muito embora Portugal e Brasil ainda se digladiem para ver que versão do idioma deve ser adotada nas cadeiras de língua portuguesa das universidades do mundo.
Língua de negro, quimbundo-português, crioulo-português -não mais língua do dominador, mas fala ajustada a muitas variantes de beiços grossos e dentes brancos de uma ponta a outra da África e da América do Sul.
Falar português para quê, essa língua que não dá Prêmio Nobel, Prêmio Pulitzer? O objetivo da cúpula da CPLP era também a defesa e promoção dessa língua pouco premiada -a terceira mais falada no Ocidente, atrás apenas de inglês e espanhol, e a sétima mais falada no mundo.
O objetivo da reunião de cúpula era, na verdade, político -o apoio dos países da CPLP para a candidatura do Brasil a uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Mas não deixou de ser, ao menos em retrato de jornal, uma espécie de "declaração de amor à língua portuguesa", como disse Clarice Lispector, uma das maiores escritoras do português de todos os tempos.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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