São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 1996
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A razão caipira é nossa última esperança

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma leitora reclama que fiquei cínico, que "não acredito na razão" e que acho que os filósofos estão perdidos em um vento de palavras vazias dentro do mercado de violências. Eu tenho esperança sim: acho que, no Brasil, justamente por sermos intuitivos e ignorantes, justamente por essa precariedade racional, ainda temos mais chance de saída que os iluminados países centrais. Nossa esperança é nossa razão caipira. A criação de símbolos intuitivos é a salvação.
Quem somos nós?
Sabemos o que é "globalização". Mas, e de nós, os "periféricos", o que restou? A posição do "explorado" mudou para a posição do "excluído". O explorado era vítima de uma injustiça dos homens maus do capitalismo. E o "excluído", quem o penaliza? Ninguém. O progresso, talvez. O capitalismo perdeu o rosto de burguês gordo, a cara de vilão e virou um abstrato cassino sem culpa. A guerra entre o bem e o mal não houve. E, agora, estamos tentando descobrir se ainda há um lugar para o Brasil, nesse trem que passou.
Antes, a Razão se instalaria na terra. O que restou disso? Restou Cuba, escangalhada. Restou a China querendo invadir Formosa, restou o Ieltsin de porre.
As ilusões perdidas
Acabou a crença de que o mundo é politicamente controlável. Estamos hoje em uma onda de maremoto "global", onde só nos resta navegar por caminhos estreitos, tentando políticas compensatórias para "minorar" o mal dos excluídos.
O discurso humanista aspira a um "rationale" plausível. As premissas se montam, buscando a alegria da conclusão; o ritmo do pensamento se ajusta em teia; as idéias crescem e concluem com bom acabamento aerodinâmico. Existe uma arte de esculpir discursos. Só isto restou aos intelectuais: a aerodinâmica dos discursos. Restou o ritmo elegante da autocrítica, restou o lamento francês das ilusões perdidas; restou a crítica às totalidades e o elogio dos fragmentos (como se fossem uma nova totalidade).
Aos intelectuais restou descrever enigmas e bradar pela razão. Só produzem diagnósticos sem solução à vista. Como planejar soluções de justiça, se a matéria do mundo baniu a idéia de solidariedade? Na hora do "que fazer?", ninguém sabe...
A tarefa com que se defronta o intelectual-político moderno é difícil como um golpe de "tai-chi-chuan". Há que abrir o caminho para o adversário (capital global) e habilmente desviar seu curso para fazer valer alguma política social (razão). Ao Estado caberia essa política de compensação. Só que o Estado não tem mais dinheiro nem poder. O capital financeiro ri do Estado. Estamos num "gap" teórico, de onde tentamos nos salvar com palavras. Não sabemos ainda o que é o tal "pós-liberalismo". Estamos ainda buscando uma terminologia que nos salve. Só que o impasse social não se resolve com linguagem; resolve-se pela produção de realidades novas e pela demarcação de diferenças. Aí entra a rica loucura brasileira: produção de atos impensados -ou seja, a arte.
Hoje estamos em uma encruzilhada com dois despachos: a) as políticas "compensatórias" de um assistencialismo "liberal"; b) os dogmas religiosos, a fé de uma esquerda fanática e arcaica. Em busca de uma "terceira" via política, os intelectuais babam aqui, no México e na França. Que produção de identidades poderá demarcar nossa diferença? Os intelectuais buscam formular uma política social possível para os países dependentes. E aí, falam, falam mas não dizem o essencial. A barreira do mercado global não tem ouvidos. O muro de Berlim foi substituído pela muralha da indústria cultural de massas. Ninguém ouve os gritos dos intelectuais.
A razão caipira
Que éramos nós? Entre ilusões e verdades, éramos um país de "Terceiro Mundo", "país do futuro" e coisa e tal. E hoje, o que nos define? Essa apropriação brega do "kitsch" internacional? Esse tênis Nike? Essa Internet, essa "pulp fiction", essa bosta toda? O que nos diferencia? O Brasil pode ser diferente.
Só uma "produção de identidades culturais novas" poderá fecundar, como vírus secundários, conceitos para formularmos uma política social.
Não se pode confiar só na Razão, esse ideal platônico de harmonia ideal. Há coisas que ninguém sabe, graças a Deus. Daqui a alguns anos seremos "de época" e, olhando para trás, veremos nosso precioso erro de hoje. No Brasil, esse rico "não-saber" tem de ser cultivado. Nesse "não-saber" é que está a nossa verdade maior. Por isso, temos de vitalizar a cultura brasileira no que ela tem de imprevisível. Uma cultura para irrigar uma política sem saída. A demarcação dessa "latinidade" tem de ser feita.
Nosso "caipirismo" racional é nossa esperança. A cultura é que cria um futuro político. Em outros termos, a nova realidade brasileira tem de ser "produzida" por ações criativas corajosas, loucas, porque a verdade é que não sabemos mais quem somos. Nem vamos descobrir pelo "papo racional". Deixa a noite chegar. A cultura é feita de coisas sem nome, mas que existem. Precisamos mais das ações artísticas que da lógica racional. Estamos na entressafra histórica. Onde estão os movimentos? "Roteiros, roteiros". Precisamos de arte. Precisamos do mistério brasileiro.
Mais do que nunca, precisamos da "contribuição milionária de todos os erros".

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